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Queimaduras e suas cicatrizes

Leandra d’Orsi Metsavaht

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20179401

Data de recebimento: 10/09/2017
Data de aprovação: 11/11/2017
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum

Abstract

As queimaduras ainda são responsáveis por grande parte dos ferimentos e óbitos decorrentes de causas externas no Brasil, bem como por grande número de afastamento do trabalho e sequelas funcionais e estéticas, principalmente na população masculina. A avaliação das queimaduras deve levar em consideração o grau de profundidade, localização, acometimento de vias aéreas e agente causal. Nos casos com indicação de tratamento ambulatorial, o antimicrobiano tópico de escolha ainda é a sulfadiazina de prata a 1%, após lavagem adequada das lesões, além da profilaxia do tétano. A prevenção de cicatrizes hipertróficas e queloides é muito importante para evitar limitações de movimento e de convívio social.


Keywords: queimaduras; sulfadiazina de prata; cicatriz hipertrófica; queloide


No Brasil, assim como no mundo, queimaduras constituem problema de saúde pública. Crianças e idosos estão bastante sujeitos a esse tipo de trauma, por violência doméstica, por panelas com água fervente, por manejo de álcool ou pela limitação física.1

As lesões em consequência de queimaduras são responsáveis por grande parte dos ferimentos e óbitos decorrentes de causas externas no Brasil, assim como numerosos afastamentos do trabalho, além de sequelas funcionais e estéticas, tais como cicatrizes hipertróficas, principalmente na população masculina.1

Por definição, a queimadura se caracteriza como a destruição parcial ou total da pele, causada por trauma térmico, elétrico, químico ou radioativo. A gravidade e o prognóstico de uma queimadura são definidos pela avaliação do agente causal, profundidade, extensão da superfície corporal queimada, localização, idade, doenças preexistentes e lesões associadas.2

O papel do dermatologista no tratamento das queimaduras é pouco discutido, e temos poucas publicações a esse respeito. Ocorrem queimaduras em dois milhões de pessoas por ano nos Estados Unidos, resultando em 60.000 hospitalizações e 6.000 mortes, metade das quais envolvendo crianças. A taxa entre homens e mulheres é de 2:1, tanto nos Estados Unidos1 quanto no Brasil,3-6 uma vez que os homens estão mais sujeitos a riscos ocupacionais.3 A média de idade nos estudos brasileiros foi de 30 anos.1,5 Em torno dessa idade concentra-se a maior força produtiva da população, sendo as queimaduras responsáveis por problemas de ordem econômica e social.1

No estudo de Millan sobre a epidemiologia das queimaduras em crianças, a média de idade foi de 5,2 anos. No total de 98 crianças, 67 (68,4%) eram do sexo masculino, e 31 (31,6%) do sexo feminino. Os acidentes foram responsáveis por 93 (94,9%) casos, e em um (1%) caso ocorreu agressão. Em quatro (4,1%) casos, a circunstância da queimadura era desconhecida. Observou-se maior ocorrência de queimaduras em crianças com até dois anos de idade.5

A negligência ou o abuso infantil são responsáveis por 20% das queimaduras pediátricas nos Estados Unidos da América, sendo as maiores fontes de queimaduras em crianças a escaldadura, o fogo e a eletricidade. As taxas de mortalidade têm caí- do devido a melhores técnicas cirúrgicas e de ressuscitação.2 Em estudo realizado no estado de Minas Gerais, o agente etiológico mais frequente das queimaduras foi o álcool líquido, acometendo 34,4% dos pacientes, seguido pelos líquidos superaquecidos (28,1%), destacando-se dentre eles a água e o óleo, e, em terceiro lugar, a chama direta, responsável por 17,6% dos casos de queimaduras.1 A escaldadura é o agente mais prevalente em crianças até quatro anos de idade,3 de acordo com o trabalho epidemiológico de Cruz e Calfa.7

 

CLÍNICA E TRATAMENTO

A gravidade e o prognóstico de uma queimadura são definidos avaliando-se agente causal, profundidade, extensão da superfície corporal queimada, localização, idade, doenças preexistentes e lesões associadas. O tratamento dessas lesões, incluindo a necessidade ou não de internação hospitalar, será orientado com base nesses fatores.1,3,7 A nomenclatura tradicional categoriza as feridas por queimadura em primeiro, segundo e terceiro graus (Quadro 1). Queimaduras de segundo grau podem depois ser subdivididas em variantes superficial e profunda. As queimaduras envolvendo estruturas profundas como músculos e ossos podem ser incluídas como as de quarto grau. Todavia, o diagnóstico definitivo da profundidade de uma queimadura só é possível após período que varia de 24 a 72 horas, devido a alterações vasculares oclusivas.3

Pacientes adultos com superfície corporal queimada de segundo grau superior a 15% ou crianças com mais de 10%, queimaduras de terceiro grau superiores a 5%, queimaduras elétricas ou aquelas que acometem vias aéreas, face, as duas mãos, os dois pés e períneo constituem as indicações clássicas de internação hospitalar. O médico deve analisar cada paciente individualmente, indicando a melhor forma de tratamento, ambulatorial ou hospitalar.

Em locais cuja derme é mais fina (como orelhas, região volar dos antebraços, região medial das coxas, períneo), as queimaduras podem ser mais profundas do que a apresentação inicial sugere. Essa derme mais fina também se apresenta em crianças e nos idosos em geral. A gravidade da queimadura se baseia na regra dos nove para verificar a área corporal atingida (BSA – Body Surface Area) (Figura 1).1,4 Essa fórmula não pode ser usada em crianças, uma vez que a cabeça corresponde a 19% numa criança de dois anos de idade. A avaliação inicial também deve levar em consideração as vias respiratórias e o aparelho cardiovascular, pois a lesão por inalação acomete até 25% dos pacientes queimados. O médico deve ter sempre em mente a possibilidade de choque hipovolêmico, independente da gravidade da queimadura, e deve líquidos e da rabdomiólise, que pode comprometer seriamente a função renal (Quadro 2).3

Queimaduras que atinjam menos de 15% da superfície corporal podem ser tratadas ambulatorialmente. Deve-se limpar a ferida com água e clorexidina degermante; na falta desta, usar água e sabão neutro. Lembrar sempre de verificar se a vacina antitetânica está em dia. Se não estiver, indique a administração de toxoide tetânico para profilaxia. As queimaduras circunferenciais em tórax podem necessitar de escarotomia para melhorar a expansão torácica.2

Apesar de pouca evidência científica e estudos apenas em modelos animais, a sulfadiazina de prata a 1% continua sendo recomendada pelo Ministério da Saúde brasileiro como padrão de antimicrobiano tópico para o tratamento de queimaduras. Face e períneo devem ser mantidos expostos. Nas demais áreas, fazer curativo oclusivo com sulfadiazina de prata a 1%.8 Avaliar a necessidade de antibióticoterpia sistêmica.2,4

As feridas mais profundas podem necessitar de debridamento seriado, especialmente as de terceiro e segundo graus. Hoje os substitutos de pele humana, como a matriz acelular dérmica, sulfato bilaminado de colágeno e condroitina e silicone e autotransplante de célula epitelial cultivada apresentam menor risco de infecção e melhor cicatrização do que os transplantes autólogos de pele humana e de animais.

Em caso de queimadura química, a equipe responsável pelo primeiro atendimento deve utilizar proteção universal para evitar o contato com o agente químico causador da queimadura, que deve ser identificado se ácido, base ou composto orgânico. Devem ser avaliados também a concentração, o volume e a duração de contato. Lembrar que a lesão é progressiva, sendo importante remover as roupas e retirar o excesso do agente causador, em água corrente por no mínimo 30 minutos. Irrigar exaustivamente os olhos no caso de queimaduras oculares. Em caso de queimadura por substância em pó, usar escova ou panos. Na dúvida, entre em contato com o centro toxicológico de sua região.2

 

CICATRIZES APÓS QUEIMADURAS

Após o período da cicatrização, iniciam-se os cuidados com as futuras sequelas. O cuidado com a cicatriz da queimadura almeja a prevenção da função dos membros afetados e que se tornem cosmeticamente aceitáveis. O objetivo deve ser atingido o mais rápida e confortavelmente, e menos dispendioso possível. Estudos recentes demonstraram que as placas e géis de silicone são o tratamento não cirúrgico mais eficiente para cicatrizes de queimadura com evidências científicas. São eficazes tanto no tratamento quanto na prevenção de cicatrizes hipertróficas.9

Vários mecanismos têm sido sugeridos para explicar a eficácia do silicone, incluindo hidratação do tecido, pressão, aumento da temperatura da cicatriz, indução da hipóxia tecidual, produção de campo estático local, absorção do silicone, redução da atividade dos mastócitos, do nível de interleucina 1 (IL-1) e da produção de matriz extracelular, tudo levando à diminuição da síntese de colágeno.10-12 O mecanismo exato de ação, todavia, permanece desconhecido.

As últimas diretrizes para o tratamento de cicatrizes defendem o uso da terapia com silicone como a prevenção e o tratamento de primeira linha para queloides e cicatrizes hipertróficas. As fitas e géis de silicone são hoje o tratamento não invasivo padrão ouro nesses casos. As fitas de silicone possuem o inconveniente de demandar fixação. Além disso o aspecto em áreas expostas incomoda alguns pacientes. O tratamento deve ser iniciado logo após a reepitelização do ferimento. É mais eficaz na fase dinâmica imatura da cicatrização e não é tão eficaz em cicatrizes antigas.

Os géis e fitas de silicone devem ser usados duas vezes ao dia a cada 12 horas, pelo período mínimo de três meses, cobrindo toda a extensão da cicatriz a ser tratada.

O fato de os produtos à base de silicone terem custo alto, serem opção terapêutica não invasiva e apresentarem benefícios explica sua popularidade clínica. É método adjuvante importante no manejo de cicatrizes hipertróficas.9-13

A terapia por pressão tem sido usada desde os anos 1970, sendo considerada a terapia padrão para tratar cicatrizes hipertróficas pós queimadura, sendo primeira linha em vários centros. É recomendada uma pressão entre 24 e 30mm Hg por seis a 12 meses. Esses dados, apesar de empíricos, são fundamentados em ampla rede de observadores. Parece que a eficácia ocorre cosméticos são variáveis. Num estudo prospectivo randomizado de 122 pacientes queimados, vestes de pressão não aumentaram o tempo de maturação da ferida nem a diminuição da duração da hospitalização do paciente.14

 

CONCLUSÃO

As lesões causadas pelas queimaduras ainda são responsáveis por grande parte dos ferimentos e óbitos decorrentes de causas externas no Brasil, bem como por grande número de afastamento do trabalho e sequelas funcionais e estéticas, principalmente na população masculina.

É grande a importância da prevenção para diminuir a morbidade e a mortalidade causadas pelas queimaduras, uma vez que a maioria é acidental, portanto perfeitamente evitável, e causada por álcool líquido. Os acidentes domésticos representam 51% de todos os casos de queimaduras em nosso meio, 80% dos quais acontecem na cozinha. Crianças até dez anos representam 43% de todos os atendimentos de queimadura.1 A educação dos pais e responsáveis e medidas de segurança no trabalho seriam as melhoras formas de prevenção das queimaduras e suas consequências.3

A sulfadiazina de prata 1% continua sendo tratamento de eleição tópica para queimaduras. A prevenção de cicatrizes hipertróficas em pacientes queimados é muito importante, já que podem trazer limitações tanto funcionais - como de amplitude de movimento - quanto cosméticas e sociais. O dermatologista desempenha papel fundamental no tratamento das queimaduras e acompanhamento das cicatrizes.

 

PARTICIPAÇÃO DOS AUTORES:

Leandra d’Orsi Metsavaht:

Concepção e planejamento do estudo, elaboração e redação do manuscrito, obtenção, análise e interpretação dos dados

 

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde do Brasil. Cartilha para tratamento de emergência das queimaduras [Internet]. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2012 [cited 2017 Dec 20]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_tratamento_emergencia_queimaduras.pdf

2. Leão CEG, Andrade ES, Fabrini DS, Oliveira RA, Machado GLB, Gontijo LC. Epidemiology of burns in Minas Gerais. Rev Bras Cir Plast. 2011; 26(4):573-7.

3. Berman B, Viera MH, Amini S, Huo R, Jones IS. Prevention and management of hypertrophic scars and keloids after burns in children.J Craniofac Surg. 2008;19(4):989-1006.

4. Bolognia J, Jorizzo JL, Schaffer JV. Dermatology. 3rd ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2015.

5. Millan LS, Gemperli R, Tovo FM, Mendaçolli TJ, Gomez DS, Ferreira MC. Epidemiological study of burns in children treated at a tertiary hospital in São Paulo. Rev Bras Cir Plast. 2012; 27(4):611-15.

6. Bessa DF, Ribeiro ALS, Barros SEB, Mendonça MC, Bessa IF, Alves MA, et al. Epidemic Profile of Burned Patients at the Hospital Regional de Urgência e Emergência de Campina Grande – Paraíba – Brazil. Rev Bras Ciênc Saúde. 2006;10(1):73-80

7. Cruz S, Calfa A. Epidemiological survey of burns in children less than six years in age admitted to the Corporation for Aid to Burned Children (COANIQUEN) in Antofagasta, Chile. Rev Cienc Salud. 2001;5(1):17-26.

8. Miller AC, Rashid MR, Falzon L, Elamin ME, Zehtabchi S. Silver sulfadiazine for the treatment of partial-thickness burns and venous stasis ulcers. J Am Acad Dermatol. 2012; 66(5):e159-65.

9. Metsavaht LD, Surgical treatment of scars. Surg Cosmet Dermatol 2016;8 (1):11-20.

10. O'Brien L, Pandit A. Silicon gel sheeting for preventing and treating hypertrophic and keloid scars. Cochrane Database Syst Rev. 2006;(1):CD003826.

11. Kim SM, Choi JS, Lee JH, Kim YJ, Jun YJ. Prevention of postsurgical scars: comparison of efficacy and convenience between silicone gel sheet and topical silicone. J Korean Med Sci. 2014; 29(Suppl 3):249-53.

12. Tziotzios C, Profyris C, Sterling J. Cutaneous scarring: Pathophysiology, molecular mechanisms, and scar reduction therapeutics - Part II. Strategies to reduce scar formation after dermatologic procedures. J Am Acad Dermatol. 2012; 66(1):13–24

13. Momeni M, Hafezi F, Rahbar H, Karimi H. Effects of silicone gel on burn scars. Burns. 2009;35(1):70-4.

14. Metsavaht L. Cicatrizes hipertróficas e queloides. In: Kadunc B, Palermo E, Addor F, Metsavaht L, Rabello L, Mattos R, et al. editors. Tratado de cirurgia dermatológica, cosmiatria e laser da Sociedade Brasileira de Dermatologia.Rio de Janeiro: Elsevier; 2012. p.677-84.

 

Trabalho realizado no Instituto Brasil de Tecnologias da Saúde (Ibts) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.


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