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Relato de caso

Retalho retroauricular: um relato de caso

Douglas Haddad Filho1; Flávia Fenólio Nigro Marcelino2; Paola Assunção Mendes2; Marcela Haddad Parada3; Carolina Soutto Mayor Mangini3

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.2021130012

Data de Submissão: 25/03/2021
Decisão final: 25/03/2021


Fonte de financiamento: Nenhuma
Conflito de interesses: Nenhum


Como citar este artigo: Haddad Filho D, Marcelino FFN, Mendes PA, Parada MH, Mangini CSM. Retalho retroauricular: um relato de caso. Surg Cosmet Dermatol. 2021;13:e20210012.


Abstract

O carcinoma basocelular (CBC) pode acometer a região auricular em diversas localizações e tamanhos variados, com ou sem comprometimento de cartilagem. Algumas vezes, as ressecções são pequenas, e as reconstruções são simples. Outras vezes, em lesões maiores, as reconstruções são mais complexas, considerando-se a restrita quantidade de pele do local e a peculiaridade das estruturas envolvidas. Relatamos o caso de um retalho retroauricular estagiado em dois tempos, após a exérese de um CBC na face posterior do pavilhão auricular direito com comprometimento parcial da cartilagem, evoluindo com ótimo resultado estético e funcional, tanto do pavilhão auricular quanto da área doadora.


Keywords: Carcinoma basocelular; Retalhos cirúrgicos; Neoplasias cutâneas; Pavilhão auricular; Rotação


INTRODUÇÃO

O carcinoma basocelular (CBC) é uma neoplasia maligna que acomete majoritariamente indivíduos de pele clara, sendo responsável por 70% dos tumores cutâneos.1,2 Ocorre principalmente em áreas de pele expostas à luz solar e caracteriza-se por um alto potencial para invasão local e baixo risco metastático.3,4,5

O pavilhão auricular pode ser acometido por essa lesão neoplásica, que deve ser removida cirurgicamente, considerando, sobretudo, seu potencial destrutivo local. A reconstrução é proporcional ao tamanho da lesão e das estruturas envolvidas, variando desde uma simples ressecção fusiforme de pele ou uma ressecção em cunha de pele e cartilagem até a reconstrução de todo o pavilhão a partir de enxertia de cartilagem e diversas etapas operatórias.5,6

A anatomia da orelha é bastante complexa, sendo necessário conhecimento anatômico detalhado para um bom resultado cirúrgico. Sua região externa é composta pelo conduto auditivo e pavilhão auricular, ambos formados por cartilagem elástica, com vascularização escassa e recobertos por pele fina, sendo conectados ao pericôndrio.1,6

 

RELATO DO CASO

Paciente A.C.L., 67 anos, sexo masculino, apresentou lesão ulcerada e sangrante com bordas elevadas em face posterior de pavilhão auricular direito, de início há dois anos e aumento progressivo. Ao exame da lesão, esta apresentava medidas de 5cm no sentido crânio-caudal e 2cm látero-lateral, com endurecimento da consistência do pavilhão, sugerindo a possibilidade de envolvimento da cartilagem.

Foi realizada a primeira cirurgia, sob anestesia geral, para a remoção da lesão. A remoção foi feita com margens de segurança de 0,5cm nas laterais, de toda a espessura da pele com pericôndrio e, parcialmente, da cartilagem de toda a extensão. No exame anatomopatológico por congelação, todas as margens estavam sem neoplasia (Figura 1).

Para cobrir o defeito, foi proposta a confecção de um retalho cutâneo da região retroauricular, com dimensões de 4 x 2cm aproximadamente, com maior eixo horizontal. Esse foi elevado e suturado na área receptora, respeitando-se uma ilha de pele onde reside o sulco retroauricular. As bordas dessa foram suturadas entre si, formando um tubo. O retalho permaneceu nessa condição por 21 dias (Figuras 2 e 3).

Após esse período, o retalho foi liberado de seu pedículo, e o túnel da pele do sulco retroauricular, desfeito (Figura 4). Assim, o retalho foi completamente suturado na área receptora, finalizando o fechamento do defeito (Figura 5). O fechamento da área doadora foi realizado por meio de um retalho de rotação, com extensão de 5cm (Figuras 6 e 7). Ambos os retalhos evoluíram com ótima perfusão (Figura 8).

 

DISCUSSÃO

O carcinoma basocelular e o espinocelular são neoplasias malignas de queratinócitos, denominadas “câncer de pele não melanoma”; são as neoplasias mais incidentes, possuindo valores ainda em ascensão. Sexo masculino e idade avançada são fatores de risco independentes para o desenvolvimento do CBC. A exposição intensa e intermitente à radiação solar está associada ao desenvolvimento de CBC devido à mutagênese causada pela radiação ultravioleta, sendo essa exacerbada em indivíduos com pele clara, cabelos ruivos ou loiros e olhos claros.3,7,8,17,18,19

A apresentação clínica mais comum do CBC é a forma de pápula ou nódulo perolado com telangiectasias e bordas elevadas e, em alguns casos, conta com a exibição de crostas ou ulceração central. Os pacientes podem queixar-se de uma ferida não cicatrizante, às vezes sangrante, assintomática ou pruriginosa. A biópsia do local é a conduta padrão para diagnóstico do CBC. Algumas lesões podem exibir mais de um padrão histopatológico, sendo as formas nodular e micronodular as mais comuns. Os subtipos morfeiforme e infiltrativo, bem como lesões com alterações histopatológicas micronodulares ou basoescamosas, são variantes mais agressivas.3,7,17,18

Enquanto a maior parte dos CBCs crescem indolentemente em relação à invasão local, uma pequena porção progride para tumores localmente avançados e metastáticos, geralmente por negligência.7,17,18

Defeitos relacionados ao câncer de pele representam um dos motivos mais comuns para cirurgia reconstrutiva da orelha, sendo a opção de rotação de retalho uma alternativa à possibilidade do fechamento primário, pois esse pode ser deformante para o pavilhão auricular. 6,9,20,21

A opção de reconstrução do pavilhão auricular com o retalho retroauricular estagiado (RRE) baseia-se, sobretudo, no abundante suprimento sanguíneo desse local, proveniente das artérias auricular posterior, temporal superficial e occipital. Concordamos com essa premissa, dado que existe uma extensa distribuição vascular no couro cabeludo. A irrigação do retalho retroauricular pode ser proveniente da artéria auricular posterior ou da artéria temporal superficial, dependendo da forma do retalho a ser utilizado. Mesmo sendo necessária a rotação estagiada, como aplicada no caso relatado, a qualidade da pele retroauricular é vantajosa para as reconstruções da face, considerando-se a coloração, textura e espessura do tecido. Além disso, a área doadora da região posterior da orelha é escondida e conta, majoritariamente, com boa cicatrização.11,12,22,24,25

No primeiro tempo cirúrgico, foi realizado um retalho de interpolação, ou seja, quando existe uma ilha de pele íntegra entre a área doadora e receptora, sendo esta responsável por manter o máximo possível da anatomia original do local, dado que o procedimento conta com uma ilha de pele sã no sulco auricular, entre a área doadora e receptora.1,13,23,24 Esse procedimento deve-se ao fato de que, após 21 dias, o retalho não depende mais de seu pedículo, sendo a área receptora a nova responsável pela irrigação desse tecido.

No segundo tempo cirúrgico, foi estabelecido o retalho de rotação, que consiste no deslocamento curvilíneo de tecido adjacente ao defeito cirúrgico, proveniente do couro cabeludo. Além disso, o retalho é capaz de abranger o defeito por meio do estiramento dos tecidos elásticos, causando a redireção da tensão do fechamento, dado que seus pontos de maior tensão percorrem sua borda distal, em vez de seu comprimento.14,15,16,26,27

Críticas são feitas quanto à necessidade de rotação de retalho de couro cabeludo para fechamento da área doadora do retalho retroauricular. Porém, com esse procedimento, a área é facilmente fechada, no mesmo tempo da liberação do pedículo do retalho retroauricular, e, além disso, em situações de defeitos ainda mais extensos, o retalho poderia ser ampliado em sua dimensão.23,24,26,27

Outras opções de retalhos poderiam ser utilizadas para reconstrução, porém é necessário atentar-se para a possibilidade de comprometimento do sulco retroauricular ou para o uso de pele com características muito distintas do tecido do pavilhão.10,20,21,24

Outra forma de utilizar esse retalho é verticalmente, sendo pediculado na região inferior. Porém, acredita-se que esse é mais vulnerável em relação à vascularização e, além disso, a área doadora também não se fecharia primariamente, necessitando de um retalho piloso em área glabra. Atente-se ainda ao fato de que a liberação de seu pedículo também seria necessária e, portanto, exigiriam-se dois tempos cirúrgicos.

Analisando a anatomia das artérias perfurantes dessa região, poderíamos pensar em elaborar um retalho que fosse transposto em tempo único. Porém, na prática, não acreditamos que qualquer retalho de couro cabeludo alcançasse a área receptora, mesmo que a rotação fosse em hélice.

 

CONCLUSÃO

O retalho de interpolação em dois tempos, seguido de um retalho de rotação, é um método eficaz para restabelecer o pavilhão auricular, sendo esse procedimento capaz de manter a anatomia da área receptora e da área doadora do retalho.

 

AUTHORS' CONTRIBUTION:

Douglas Haddad Filho 0000-0001-9304-4739
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Flávia Fenólio Nigro Marcelino 0000-0003-4057-5143
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Paola Assunção Mendes 0000-0002-1116-9819
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Marcela Haddad Parada 0000-0001-5616-829X
Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Carolina Soutto Mayor Mangini 0000-0002-4354-1347
Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

 

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