André Cesar Antiori Freire Pessanha1; Luiz Roberto Terzian2; Fernanda de Sousa Ferrara3
O câncer do lábio corresponde a 25-35% de todos os cânceres de boca. O carcinoma espinocelular é o tipo histológico mais comum nesse local (95%). São descritas diversas opções de reconstrução de feridas após exerese desse tipo de tumor no lábio inferior, cuja escolha depende da experiência do cirurgião e da proporção do defeito final em relação à dimensão do lábio. Descreve-se caso de paciente do sexo masculino com ferida no lábio inferior diagnosticada histopatologicamente como carcinoma espinocelular invasivo. Procedeu-se à cirurgia de Mohs tendo sido feita a reconstrução com retalho de transposição do lábio superior (retalho de Abbe). Na evolução observou-se abertura completa da boca, sem prejuízo funcional da fonação e mastigação, e com resultado cosmético favorável, demonstrando-se assim a utilidade desse tipo de reconstrução.
Keywords: CIRURGIA DE MOHS; CARCINOMA DE CÉLULAS ESCAMOSAS; RECONSTRUÇÃO
O câncer do lábio corresponde a 25-35% de todos os cânceres de boca. O carcinoma espinocelular (CEC) é o tipo histológico mais comum nesse local (95%), 20 vezes mais prevalente no lábio inferior do que no superior, acometendo mais homens do que mulheres (6:1) e mais frequentemente pessoas acima de 50 anos, de pele clara e que exerçam atividades profissionais que demandam exposição crônica à radiação ultravioleta. Em pessoas mais jovens é incomum, porém as chances aumentam caso sejam infectados pelo HIV ou se tenham submetido a transplante renal. Quando diagnosticado em estádio precoce, a taxa de cura é de 80-90%, com taxa de mortalidade variando de dez a 15%. As metástases variam de 11 a 18%, e nesses casos a sobrevida média em cinco anos cai para 25%.1
Existem diversas opções de reconstrução de feridas após exerese de CEC de lábio inferior, a depender da experiência do cirurgião e da proporção do defeito final em relação à dimensão do lábio. Defeitos que ocupam até metade dos lábios podem ser reconstruídos através de Wplastia ou retalho retangular. Defeitos de metade a 2/3 dependerão do envolvimento ou não da comissura labial. Em caso positivo dessa condição, está indicado o retalho de Estlander, e em caso negativo, o retalho de Abbe. Feridas que envolvam 2/3 do lábio ou sua dimensão total serão reconstruídas em função da localização do defeito. Se central está indicado o retalho de Bernard-Burrow-Webster; se lateral, retalhos de Gate ou Karapandzic são melhores opções.2
Paciente do sexo masculino, 56 anos, natural de Santo André (SP), apresentando ferida no lábio há seis meses com evolução progressiva. Já havia operado um tumor na mesma localização em 2010. Ao exame dermatológico apresentava tumoração ulcerovegetante, com superfície sangrante e crostas melicéricas, além de odor fétido (Figura 1). Não eram palpáveis os linfonodos cervicais. Foi solicitado exame anatomopatológico que evidenciou CEC invasivo, com moderado grau de diferenciação (Broders II). Procedeu-se à cirurgia micrográfica de Mohs obedecendo aos seguintes critérios: CEC, grande dimensão e acometimento de borda livre, além de possível recidiva. Número de fases: 1; número de fragmentos: 4. Técnica de reconstrução: retalho de transposição do lábio superior - retalho de Abbe (Figuras 2 e 3). Foi mantido o pedículo de nutrição durante três semanas, introduzindo-se alimentação por dieta líquida e pastosa no período, ao fim do qual o pedículo foi seccionado, (Figura 4) e finalmente foi possível a abertura completa da boca, sem prejuízo funcional da fonação e mastigação, além do resultado cosmético favorável. (Figura 5)
Em 1898, Abbe descreveu retalho que envolvia a transferência de um segmento triangular de espessura total do tecido do lábio inferior para um defeito de espessura total do superior. Este tipo de reconstrução é ideal para defeitos de um a 2/3 do lábio.3-5 No lábio inferior é a opção ideal para defeitos laterais que não podem ser fechados com retalhos de avanço e rotação.6 O retalho é desenhado com dimensão equivalente à metade do tamanho do defeito e girado em um eixo de quase 180 graus sobre o pedículo à medida que é inserido no defeito do lado oposto. O ponto pivô é fixado próximo à comissura para manter irrigação mais proximal.4 Tal inserção é reforçada por um ponto de fixação com fio de náilon 2.0 para que a nutrição não fique comprometida pelos movimentos do lábio e para evitar possível ruptura do pedículo. Enquanto o retalho estiver nessa posição, os pacientes podem fazer dieta oral limitada a líquidos e alimentos leves que não exijam mordida ou mastigação. Após três semanas o pedículo é rompido, assim como o ponto de náilon 2.0.3
Na maioria dos casos, a altura do retalho de lado oposto é projetada para equivaler à do leito receptor, com largura correspondendo à metade da largura do defeito.3
A principal fonte de nutrição do retalho de Abbe é a artéria labial,3 que é ramo da artéria facial. Tem origem na profundidade dos músculos orbicular da boca e depressor do ângulo da boca; seu trajeto ocorre entre a mucosa labial e o músculo orbicular, topograficamente correspondendo à linha posterior do vermelhão.5Tende a ficar ligeiramente mais cefálica na região central do lábio superior. Portanto, é mais seguro utilizar pedículo lateral quando o retalho é extraído do lábio superior. A incisão de pele para criar o retalho pode se estender a distância limitada pela porção anterior do vermelhão.3
Deve-se ter o cuidado de aproximar rigorosamente todas as camadas do lábio com suturas, principalmente o músculo, para evitar a formação de cicatriz deprimida e desnivelada ao redor da borda do retalho.3
O maior benefício desse tipo de reconstrução é a preservação das comissuras labiais, fato de fundamental importância funcional. Outra vantagem é a estética devido à reparação da ferida com tecido similar.6
As desvantagens são a necessidade de dois estádios, o risco de ruptura do retalho de nutrição devido à abertura da boca e a formação de relativa microstomia.6
1. Vieira RAMAR, Marques MEA, Minicucci EM, Marques SA; Actinic cheilitis and squamous cell carcinoma of the lip: clinical, histopathological and immunogenetic aspects; An Bras Dermatol. 2012;87(1):105-14.
2. Craigg L. ; Operative techniques in otolaryngology- Head Neck Surg. 1993;4(1):46-53.,
3. Baker SR. Retalhos locais em reconstrução facial. 2ª ed. Rio de Janeiro: DiLivros; 2009
4. Baumann D, Robb G. Lip reconstruction. Semin Plast Surg. 2008;22(4):269-80.
5. Sajjadian A, Narayan D. Lip reconstruction procedures. Acessado em : 30/03/2014. Disponível em: http://emedicine.medscape.com/article/1288447-overview#a04
6. Boutros S, Reconstruction of the lips, Grabb and Smith's Plastic Surgery, Sixth Edition, Copyright© 2007.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) - Santo André (SP), Brasil.