4233
Views
Open Access Peer-Reviewed
Relato de caso

Molusco contagioso como complicação de tatuagem: um relato de caso e revisão da literatura

Flávia Fenólio Nigro Marcelino1; Jayme de Oliveira-Filho2; Gabriela Machado Dias Junqueira3; Márcia Ferraz Nogueira3; Alexandre Ozores Michalany3

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.2021130008

Data de submissão: 09/08/2020
Decisão final: 09/02/2021


Fonte de financiamento: Nenhuma
Conflito de interesses: Nenhum


Agradecimentos: A todos que contribuíram direta ou indiretamente com este trabalho


Como citar este artigo: Marcelino FFN, Oliveira-Filho J, Junqueira GMD, Nogueira MF, Michalany AO. Molusco contagioso como complicação de tatuagem: um relato de caso e revisão da literatura. Surg Cosmet Dermatol. 2021;13:e20210008.


Abstract

A tatuagem é uma prática antiga e muito popular atualmente. Os pigmentos utilizados mudaram com o tempo, mas continuam apresentando composições variadas e pouco regulamentadas. Há inúmeros casos descritos de efeitos adversos pós-tatuagem, em sua maioria infecciosos, e reações de hipersensibilidade. Relatamos o caso de uma mulher de 64 anos, hígida, com pápulas nas sobrancelhas um mês após realizar micropigmentação. A biópsia excisional fez o diagnóstico de molusco contagioso, e o tratamento foi realizado com curetagem das lesões. Na literatura, existem poucos relatos de disseminação de molusco contagioso causada por tatuagem.


Keywords: Molusco contagioso. Tatuagem. Infecções por poxviridae


INTRODUÇÃO

A tatuagem é uma prática antiga e vem se tornando cada vez mais comum. Estima-se que 10 a 30% da população atualmente possua tatuagens.1-4 Existem diversos tipos e finalidades, tais como expressão artística, religiosa, social e cosmética.1,4,5 O procedimento consiste na introdução de pigmentos na derme através de agulhas, manual ou eletricamente, a fim de produzir um desenho permanente. As tatuagens cosméticas, também chamadas de micropigmentação ou maquiagem definitiva, vêm ganhando popularidade. Podem ser utilizadas para camuflagem de afecções cutâneas, atuar como adjuvantes nas cirurgias reconstrutivas, ou apenas substituir a maquiagem. Na micropigmentação, o pigmento é depositado na derme mais superficialmente, com efeito temporário por atingir camadas mais superficiais do que a tatuagem convencional. É de fácil acesso à população, apesar de ser um procedimento invasivo.6-10

As tintas e pigmentos utilizados em tatuagens são misturas químicas impuras que contêm óxido de metais pesados, sais e moléculas orgânicas. Tintas coloridas modernas costumam incluir pigmentos-azo e compostos policíclicos. Essas misturas nem sempre são regulamentadas por órgãos de vigilância sanitária e não há controle da aplicação desses produtos.1,2,4,6,11,12 No Brasil, apesar das inúmeras marcas de tintas disponíveis, apenas três são regulamentadas pela ANVISA.13

Histologicamente, observa-se pigmento livre na derme ou fagocitado por macrófagos. Podem também ser encontrados em linfonodos, ilustrando o contato próximo que o pigmento e seus metabólitos podem estabelecer com nosso sistema imune.1,2,11

Considerando a quebra da barreira cutânea, a tatuagem representa risco de infecção. Há possibilidade de contaminação pela tinta, pelos instrumentos utilizados não devidamente esterilizados, pela antissepsia inapropriada da pele, além da possibilidade de infecção secundária durante o processo de cicatrização.1,2 As infecções cutâneas variam desde piodermites até endocardite e sepse, sífilis, hanseníase, micobacterioses, contaminação por fungos e disseminação de doenças virais, como HPV, molusco contagioso, herpes-vírus, hepatites B e C e até HIV.1,2,3,12

Reações de hipersensibilidade também ocorrem, visto que o pigmento atua como corpo estranho na derme, podendo desencadear lesões liquenoides, granulomatosas e até pseudolinfomatosas. Reações imunológicas podem ser imediatas ou tardias e se manifestar local ou sistemicamente. Dermatites de contato alérgicas são as manifestações cutâneas mais comuns relacionadas a tatuagens.3 A tinta vermelha é a mais envolvida, provavelmente devido ao mercúrio antigamente usado como pigmento.2,3 Há também relatos de produção de fenômeno de Koebner, desencadeando lesões de psoríase, vitiligo e líquen plano.2,3,14,15

Os potenciais efeitos cancerígenos locais e sistêmicos das tatuagens e tintas utilizadas ainda permanecem incertos.11 Dermatofibromas, queratoacantomas, hiperplasia pseudoepiteliomatosa, carcinomas basocelulares e espinocelulares, melanoma e outros tumores cutâneos já foram encontrados em pele previamente tatuada1,2,3,11, porém esta associação tem sido considerada como coincidente.11 Orienta-se a não fazer o desenho sobre um nevo melanocítico pela dificuldade de realizar o acompanhamento do mesmo. Torna-se também mais difícil identificar novas lesões em peles tatuadas, o que poderia retardar o diagnóstico de um tumor maligno.2,3

 

RELATO DO CASO

Relatamos o caso de paciente feminina, 64 anos, branca, sem comorbidades prévias, que, um mês após realizar micropigmentação de sobrancelhas em clínica de estética, apresentou prurido intenso, com formação de pápulas estritamente sobre o local da tatuagem (Figura 1). Ao exame dermatológico, apresentava numerosas pápulas de 1 a 4mm, perláceas e normocrômicas sobre área da tatuagem na sobrancelha direita (Figura 2). Foi realizada biópsia excisional por punch, que evidenciou no exame anatomopatológico área hiperplásica na epiderme caracterizada por proliferação das células do corpo mucoso de Malpighi, formando invaginações piriformes para a derme (Figura 3), com acúmulo progressivo de material amorfo e eosinofílico, compatível com molusco contagioso (Figura 4). Sorologias para hepatites B e C e HIV foram negativas. O tratamento foi realizado com curetagem das lesões, com bom resultado, sem recorrência (Figuras 5 e 6).

 

DISCUSSÃO

Molusco contagioso é uma dermatovirose causada por um poxvírus. Habitualmente, sua transmissão requer contato com hospedeiros infectados ou fômites contaminados. Apresenta distribuição universal, acometendo mais frequentemente crianças na idade escolar. Em adultos saudáveis, pode manifestar-se na região anogenital, principalmente por transmissão sexual, sendo também uma causa de infecção sexualmente transmissível (IST). É mais comumente encontrada em indivíduos adultos imunocomprometidos, podendo apresentar quadro disseminado ou mesmo fenômenos inflamatórios como uveíte.16-19 Assim como as demais infecções disseminadas pela tatuagem, as duas possibilidades mais plausíveis para a transmissão do molusco contagioso nestes casos são a contaminação da tinta ou dos instrumentos utilizados.18,21

A lesão clínica caracteriza-se por pápula perolada firme e umbilicada, normocrômica, de poucos milímetros, mais comum em dobras cutâneas, tronco, coxas, nádegas e face.17 À dermatoscopia, apresenta-se como lesão arredondada, brilhante, com vasos em grampo na periferia e com área central pequena circular, de coloração mais clara, lembrando um alvo (padrão do alvo branco).20 Os diagnósticos diferenciais são tumores de anexos, verrugas virais, xantogranuloma juvenil, carcinoma basocelular, nevo de Spitz, granuloma anular, dentre outros.17 Em imunocomprometidos, lembrar que micoses sistêmicas e subcutâneas podem ter apresentação similar.19 Esta dermatose regride espontaneamente em imunocompetentes, mas algumas opções terapêuticas estão disponíveis para acelerar a erradicação, como curetagem, crioterapia, queratolíticos, imiquimode e outros quimiovesicantes.17

Após pesquisa no banco de dados do PubMed usando as palavras “Molluscum contagiosum” e “tattoo” ou “Molluscum contagiosum” e “tattoing”, encontramos apenas dez casos publicados18-27, sendo o mais antigo de 1982 e o mais recente, de 2013. Todos os pacientes eram imunocompetentes, de 20 a 59 anos, nove homens e uma mulher. Na maioria dos casos, as lesões eram estritamente sobre a área tatuada, exceto um, que também apresentou lesões na pele adjacente. Cinco casos apresentaram o quadro em até um mês após a realização da tatuagem e outros quatro em até cinco meses (um caso não teve o tempo de apresentação descrito). Alguns pacientes recusaram as modalidades de tratamento e todos os outros tiveram suas lesões curetadas, com sucesso e sem recorrência. Um caso teve desaparecimento espontâneo em seis meses.

Afecções cutâneas após micropigmentação e maquiagens definitivas na face também foram relatadas. Como exemplo, sarcoidose cutânea e sistêmica28 e micobacteriose29 após tatuagem para desenho das sobrancelhas. Não foi encontrado relato de molusco contagioso como complicação de micropigmentação ou tatuagem cosmética.

É importante ressaltar que nossa busca no PubMed limitou-se a artigos na língua inglesa ou que, ao menos, apresentassem o título traduzido. Além disso, há de se considerar eventuais casos semelhantes que não tenham sido relatados e publicados no meio científico.

 

CONCLUSÃO

Sendo a tatuagem cada vez mais comum, suas complicações serão mais recorrentes. Espera-se do dermatologista, portanto, preparo para suspeitar, investigar, diagnosticar e tratar essas afecções cutâneas. De grande importância também é o conhecimento médico da técnica e suas possíveis complicações para orientar e informar ao paciente que manifesta desejo de realizá-la.

Práticas como a micropigmentação e maquiagens definitivas são amplamente difundidas e de fácil acesso à população, sendo consideradas por muitos como técnica simples e segura. Mas, sendo uma tatuagem, estão também sujeitas a todos os riscos aqui apresentados.

É imprescindível contar com regulamentação e controle de qualidade dos pigmentos utilizados e da técnica, por meio de órgãos públicos e de vigilância sanitária, por se tratar de um procedimento invasivo com sérias complicações já descritas.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Flávia Fenólio Nigro Marcelino 0000-0003-4057-5143
Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Jayme de Oliveira-Filho 0000-0003-0239-0981
Aprovação da versão final do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.

Gabriela Machado Dias Junqueira 0000-0003-0899-9341
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.

Márcia Ferraz Nogueira 0000-0001-7872-7304
Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.

Alexandre Ozores Michalany 0000-0002-8814-4513
Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.

 

REFERÊNCIAS

1. Hermida MD, Cabrera HN. Tattoos: very popular, not so innocent. SKINMed. 2017; 15:37-42.

2. Wenzel SM, Rittmann I, Landthaler M, Bäumler W. Adverse reactions after tattooing: review of the literature and comparison to results of a survey. Dermatology. 2013;226(2):138-47.

3. Kluger N. An update on cutaneous complications of permanent tattooing. Expert Rev Clin Immunol. 2019;15(11):1135-43.

4. Islam PS, Chang C, Selmi C, Generali E, Huntley A, Teuber SS, et al. Medical complications of tattoos: a comprehensive review. Clin Rev Allergy Immunol. 2016;50(2):273-86.

5. Mimoun M, Noel W, Malca N, Chaouat M, Boccara D. Dealing with tattoos in plastic surgery. Complications and medical use. Ann Chir Plast Esthet. 2017;62(2):e23-9.

6. Ortiz AE, Alster TS. Rising concern over cosmetic tattoos. Dermatol Surg. 2012;38(3):424-9.

7. De Cuyper C. Permanent makeup: indications and complications. Clin Dermatol. 2008;26(1):30-4.

8. Garg G, Thami GP. Micropigmentation: tattooing for medical purposes. Dermatol Surg. 2005;31(8 Pt 1):928-31.

9. Ju HJ, Eun SH, Lee HN, Lee JH, Kim GM, Bae JM. Micropigmentation for vitiligo on light to moderately colored skin: updated evidence from a clinical and animal study. J Dermatol. 2020. Epub 2020 Mar 2.

10. Vassileva S, Hristakieva E. Medical applications of tattooing. Clin Dermatol. 2007;25(4):367-74.

11. Kluger N, Koljonen V. Tattoos, inks, and cancer. Lancet Oncol. 2012;13(4):e161-8.

12. LeBlanc PM, Hollinger KA, Klontz KC. Tattoo ink-related infections awareness, diagnosis, reporting, and prevention. N Engl J Med. 2012;367(11):985-7.

13. Laboissière P. Agência Brasil [Internet]. Brasília, Empresa Brasil de Comunicação [cited 2014 May 6]. Available from: https://agenciabrasil.ebc.com.br/

14. Kluger N. Tattoo side effects worldwide: a google trends-based time series analysis. Acta Dermato Venerol Alp Pannonica Adriat. 2019;28(3):125-7.

15. Jacob CI. Tattoo-associated dermatoses: a case report and review of the literature. Dermatol Surg. 2002;28(10):962-965.

16. Ostheimer TA, Burkholder BM, Leung TG, Butler NJ, Dunn JP, Thorne JE. Tattoo-associated uveitis. Am J Ophthalmol. 2014;158(3):637-43.

17. Bologna JL, Jorizzo JL, Rapini RP. Dermatology. 3th ed. Elsevier; 2012.

18. Molina L, Romiti R. Molluscum contagiosum on tattoo. An Bras Dermatol. 2011;86(2):352-4.

19. De Giorgi V, Grazzini M, Lotti T. A three-dimensional tattoo: molluscum contagiosum. CMAJ. 2010;182(9):E382.

20. Panasiti V, Devirgiliis V, Roberti V, Curzio M, Calvieri S. Molluscum contagiosum on a tattoo: usefulness of dermoscopy. Int J Dermatol. 2008;47(12):1318-9.

21. Salmaso F, Gnecchi L, Gianotti R, Veraldi S. Molluscum contagiosum on a tattoo. Acta Derm Venereol. 2001;81(2):146-7.

22. Grillo E, Urech M, Vano-Galvan S, Jaén P. Lesions on tattooed skin a case study. Aust Fam Physician. 2012;41(5):308-9.

23. Ruiz-Villaverde R. Molluscum contagiosum: an unusual complication of tattooing. Br Med J (Clin Res Ed). 1982;285(6342):607.

24. Kluger N, Comte C, Guillot B. Molluscum contagiosum sur tatouage [Molluscum contagiosum on a tattoo]. Ann Dermatol Venereol. 2007;134(5 Pt 1):506-7.

25. Sánchez-Cano D. Pearled papules over tattoo: molluscum cotagiosum. Pan Afr Med J. 2013;16:49.

26. Pérez-Barrio S, González-Hermosa MR, Ratón JA, Díaz-Pérez JL. Molusco contagioso sobre tatuaje [Moluscum contagiosum over a tattoo]. Actas Dermosifiliogr. 2009;100(2):152-4.

27. Pérez Gala S, Alonso Pérez A, Ríos Buceta L, Aragüés Montañés M, Garcia Díez

28. A. Molluscum contagiosum on a multicoloured tattoo. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2006;20(2):221-2.

29. Huisman S, Van der Bent SAS, Wolkerstorfer A, Rustemeyer T. Granulomatous tattoo reactions in permanent makeup of the eyebrows. J Cosmet Dermatol. 2019;18(1):212-4.

30. Wollina U. Nodular skin reactions in eyebrow permanent makeup: two case reports and an infection by mycobacterium haemophilum. J Cosmet Dermatol. 2011;10(3):235-9.


Licença Creative Commons All content the journal, except where identified, is under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International license - ISSN-e 1984-8773