Érico Pampado Di Santis1,2; Samira Yarak1; Marcos Roberto Martins3; Sergio Henrique Hirata1
Data de recebimento: 30/08/2020
Data de aprovação: 10/11/2020
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum
Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação de Saúde Baseada em Evidências da Universidade Federal de São Paulo
Agradecimentos: Por sugestão e incentivo do saudoso professor Sebastião de Almeida Prado Sampaio, que costumava arquivar notícias relacionadas a óbitos em lipoaspirações, esta pesquisa teve seu início. Este professor sempre acreditou na segurança da lipoaspiração de pequenos volumes, sob anestesia local com uso de microcânulas, conforme realizada entre os dermatologistas.
INTRODUÇÃO: A lipoaspiração está entre as cirurgias estéticas mais realizadas no Mundo. Sua mortalidade varia; 2,6 (6) a 19 (7) mortes/100 mil. Dados são obtidos por questionários a membros de sociedades médicas (4-10) e retrospectivo, obtidos em IML, (3, 11) ambos falhos. O primeiro pelo viés profissional e duplicidade, o segundo pela falta da causa mortis.
OBJETIVOS. Identificar o número e causas das mortes relacionadas à lipoaspiração por registros documentais das notícias veiculadas na imprensa e estudo das certidões de óbito.
MÉTODOS. Estudo documental, descritivo-quantitativo. Com a ciência, dos nomes e cidade do óbito, obtivemos certidões nos cartórios civis.
RESULTADOS. 102 mortes e 86 certidões de óbito. Tromboembolia pulmonar foi a causa mortis mais citada em 17,44%, 45% no mesmo dia da cirurgia; 53,6% realizadas em hospitais e 61,76% isoladas. Especialidade dos médicos responsáveis: cirurgião plástico (74%), nenhum registrado na qualificação de especialista em dermatologia no CFM. 12,98% dos atestados preenchido por médicos que participaram da cirurgia. Limitações. A impossibilidade ética no acesso aos prontuários médicos e o preenchimento inadequado das certidões de óbitos.
CONCLUSÃO. A notificação compulsória deve ser instaurada por lei para formação de um banco de dados que auxiliará na construção de diretrizes para prevenção desses óbitos.
Keywords: Lipoaspiração; morte
Lipoaspiração é o procedimento médico-cirúrgico para o tratamento do acúmulo de tecido adiposo superficial que prejudica a silhueta corporal. A aspiração é feita por meio de cânulas conectadas à bomba a vácuo (sugador) ou à seringa, as quais geram pressão negativa.1, 2
De 2011 até 2020, a lipoaspiração figurou entre as primeiras posições no ranking das cirurgias estéticas mais realizadas no mundo, sendo que, em cada ano, mais de um milhão de cirurgias são realizadas.
O número e as causas de óbito, em geral de pacientes jovens e hígidos, não estão bem estabelecidos.2,8,10
Acreditamos que levantar o número de óbitos por meio das notícias veiculadas na imprensa é método mais eficaz que o envio de questionários para membros de sociedades médicas ou o estudo retrospectivo de prontuários de institutos necroscópicos, pois estes últimos apresentam deficiências, como o viés das respostas e a falta de dados nos atestados de óbitos para análise fidedigna. Os dados obtidos poderão contribuir indiretamente para o estabelecimento de medidas profiláticas. Assim, o propósito deste trabalho é verificar a incidência de causas de óbito por lipoaspiração bem como identificar outras variáveis que possam estar a elas relacionadas.
Trata-se de um estudo documental, descritivo-quantitativo, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UNIFESP-EPM (CEP 542.458) no período de 1987, data da primeira morte em uma cirurgia de lipoaspiração no Brasil, até setembro de 2015.
Utilizamos notícias da mídia para levantar o número de mortes relacionadas à lipoaspiração no Brasil neste período, da primeira notícia de morte após lipoaspiração até quando foram ultrapassados 100 casos noticiados. Nossas bases de dados foram notícias escritas nos maiores jornais impressos e análise dos principais portais de notícias na rede mundial de computadores.
A imprensa, geralmente, noticia o nome e sobrenome da vítima, sexo, idade, estado civil, local institucional da cirurgia, datas da cirurgia e do óbito. Com essas informações, junto aos cartórios de registro civil, conseguimos as certidões de óbito. Estes documentos permitiram-nos confirmar as variáveis adquiridas pela imprensa e reconhecer outros dados como: cor, causa mortis (espelhada no atestado de óbito preenchido por profissional médico) e o nome do profissional envolvido. Também foram coletados dados referentes ao sexo, idade, cor, estado civil, datas da cirurgia e do óbito, local institucional da cirurgia e a causa declarada pelas fontes (certidão de óbito e imprensa). Consultas posteriores nos sites dos conselhos e sociedades médicas permitiram-nos conhecer a especialidade do médico que realizou a cirurgia.
Foram levantados 102 casos de morte relacionados à lipoaspiração entre 17 de janeiro de 1987 e 15 de setembro de 2015, e obtidas 86 certidões de óbito (84,31%) nos cartórios de registro civil.
O sexo feminino representou 98,04% desses 102 pacientes. A idade variou entre 18 e 62 anos. A faixa etária entre 31 e 40 anos representou 40% dos casos (Tabela 1).
O óbito no dia zero (dia da cirurgia) ocorreu em 45% dos casos. Quando considerada a morte entre o dia da cirurgia e o final da primeira semana (D7), esse valor elevou-se para 82,82%; da 2ª semana ao 28º dia, 13,13%, e 4,04% após o primeiro mês (N=99). Foi possível a identificação de 97 locais institucionais nos quais as cirurgias foram realizadas. Em 53,6% dos casos, aconteceram em hospitais e em 46,4%, em clínicas fora de hospitais. A associação da lipoaspiração com outros procedimentos ocorreu em 38,24% dos casos enquanto em 61,76% foram relatadas como lipoaspiração realizada de maneira isolada.
Em relação às especialidades dos médicos envolvidos, conseguimos detectá-las em 86 casos. Destes, 66 médicos detinham especialidade registrada, 61 em cirurgia plástica, dois em cirurgia geral, dois em ortopedia, um em diagnóstico por imagem; 20 profissionais não tinham registrada nenhuma especialidade médica; e 13,64% dos médicos envolveram-se em mais de uma cirurgia que resultou no óbito do paciente.
Das causas de óbito, o tromboembolismo ficou em primeiro lugar com 17,44%, seguido por perfuração (13,95%), infecção (9,3%), hemorragia (5,81%), embolia gordurosa (4,65%) e edema agudo de pulmão e complicações anestésicas, com 2,32% cada uma delas (N=86). Em 44,18% dos casos, não foi possível determinar a causa do óbito (Figura 1).
A morte resultante da lipoaspiração é um infortúnio na saúde pública.3 E o desconhecimento de suas causas impedem que tenhamos dados confiáveis para a elaboração de protocolos que possam evitá-la.
A razão para a pequena casuística encontrada nos estudos anteriormente realizados está relacionada à dificuldade na obtenção de dados referentes aos óbitos. Na literatura, encontramos dois métodos para se obterem essas informações: questionários enviados a membros de sociedades médicas, geralmente sociedades de cirurgia plástica4-10, e o estudo retrospectivo de dados obtidos em instituto médico legal.3, 11
O método que utilizou envio de questionários foi criticado7 pela possibilidade de respostas tendenciosas. É razoável supor que o médico não respondesse ou omitisse dados, pois pode usar do benefício jurídico de não produzir provas contra si. Esta hipótese foi confirmada pela baixa taxa de respostas observada na maioria desses estudos.4-6, 9,10 Esse tipo de resultado é esperado, pois ao médico envolvido é reservado o direito de não apresentar provas que venham a prejudicá-lo. Estudos retrospectivos3,11 de dados obtidos em institutos de Medicina Forense também são deficientes, pois o procedimento cirúrgico envolvido, muitas vezes, não é mencionado, dificultando a capacidade de identificar as mortes relacionadas à lipoaspiração.
Por serem notícias impactantes, óbitos decorrentes de lipoaspirações são amplamente noticiados pela imprensa e geram enorme preocupação nas academias e conselhos médicos. A partir deste fato, foi iniciado o presente estudo, que pesquisou notícias veiculadas nos meios de comunicação impresso e digital e fez posterior análise de documentos públicos.
Com esta metodologia, encontramos 102 casos de óbitos relacionados à lipoaspiração, a maior casuística entre a literatura científica estudada4-10 (Quadro 1). A análise das certidões de óbito evita que o mesmo caso seja incluído duas ou mais vezes, como pode ocorrer em estudos usando-se questionários, e que o questionário seja enviado a dois médicos que participaram da mesma cirurgia.
Por ser cirurgia realizada mais frequentemente nas mulheres, a maioria de óbitos encontrada foi entre o sexo feminino (98,04%) e entre jovens (97,05%), semelhante aos dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (84,9% dos pacientes submetidos à lipoaspiração em 2017 eram do sexo feminino). Estes pacientes eram saudáveis ¿¿e foram submetidos à cirurgia eletiva com a expectativa de permanecer em boa saúde.
Em relação ao motivo dos óbitos, existem diferenças quando se consulta a literatura. No presente estudo, não foi possível estabelecer a causa do óbito em 44,18% dos casos (indeterminada). Tromboembolismos ocorreram em 17,44% e infecção em 9,3% dos casos.
A causa indeterminada também foi a principal no estudo de Grazer e de Jong7, com 28,5%, e a 5ª nos estudos de Lehnhardt et al9, com 4,35%.
Em relação às causas conhecidas, quando comparamos com o estudo de Grazer e de Jong7 (método utilizado: questionários enviados a médicos), a ordem das duas primeiras causas coincide: fenômenos tromboembólicos na primeira, com 23,1%, e perfuração na segunda, com 14,6%. Já as principais causas de óbito no estudo de Lehnhardt et al9 são a infecção como primeira causa, com 65%, a perfuração como segunda, com 13%, seguida por fenômenos tromboembólicos na terceira posição, com 8%.
Deve-se ter cuidado na interpretação dos dados. Cupello et al10 afirmam que seus dados devem ser interpretados com cautela, pois o estudo incluiu um grande número de respostas ausentes. A posição de morte indeterminada foi a última colocada no estudo de Lehnhardt.9 No entanto, mesmo com o apoio de várias sociedades médicas e com o envio de três mil questionários, foram contabilizados apenas 23 casos de óbito.
Hughes8 relatou um aumento alarmante na taxa de mortalidade quando a lipoaspiração foi realizada concomitantemente com a abdominoplastia em relação a quando foi realizada isoladamente, com um óbito em 3.281 cirurgias versus um óbito em 47.415 cirurgias, respectivamente. A combinação dessas cirurgias ou a lipoaspiração de grande volume podem desempenhar um papel importante nas causas da morte. Não encontramos o mesmo resultado. O número de óbitos encontrado em lipoaspirações realizadas de forma isolada, declaradas em entrevistas à mídia por membros da equipe cirúrgica, foi de 61,76%.
Nosso estudo mostrou que o período crítico nas cirurgias de lipoaspiração é a primeira semana após a cirurgia, principalmente o primeiro dia (45% dos pacientes morreram no dia da cirurgia e 82,82% na primeira semana). Acreditamos que esse dado demonstra a importância da atenção no pós-operatório de 24 horas e na primeira semana, com reavaliações mais frequentes.
Para os 102 casos investigados, não foram encontradas evidências de óbitos ocorridos com o uso de anestesia local tumescente, conforme descrito por Klein.16 Também não houve citação nas certidões de óbito de intoxicação por lidocaína como causa mortis ou processo que a tenha levado. A técnica de Klein é mais segura porque o paciente sob anestesia local ainda apresenta reflexo álgico e sente dor se a cânula tocar a fáscia muscular. Isso evita a possibilidade de perfuração muscular, que pode ocorrer quando a cânula não é colocada no local apropriado. Além disso, a taxa de depleção de sangue usando esta técnica é significativamente menor.
A notificação compulsória dos casos favoreceria a criação de um banco de dados. O estudo detalhado da cirurgia (técnica empregada, anestesia utilizada, quantidade aspirada etc.), do estado de saúde pré-operatório e das complicações do pós-operatório que levaram o paciente ao óbito deve estar documentado e acessível para que comitês possam estabelecer diretrizes de prevenção de morte em cirurgias estéticas.
É importante que as autoridades de saúde pública desenvolvam estratégias para identificar mortes relacionadas a procedimentos estéticos e que esses casos sejam submetidos à necrópsia (incluindo testes toxicológicos).14 Os dados obtidos auxiliarão no estabelecimento de medidas preventivas. Nos Estados Unidos, os governos estaduais da Flórida e do Alabama determinaram a obrigatoriedade do relato de complicações que ocorrem em procedimentos cirúrgicos extra-hospitalares.12,13 Em nosso estudo, dados como o tipo de anestesia utilizada nessas cirurgias só podem ser conhecidos consultando-se os prontuários médicos dos pacientes, documentos confidenciais.
Futuros estudos com os prontuários dessas vítimas podem esclarecer as lacunas deixadas na presente pesquisa. A normatização de acesso aos prontuários por médicos pesquisadores, com todo rigor ético e legal, certamente trará benefício à saúde pública.
A busca do melhor preenchimento de atestados de óbito pode significar a melhora no sistema, no funcionamento e no conhecimento das reais causas dos óbitos permitindo sermos mais eficientes na prevenção de mortes.
Acreditamos que a notificação compulsória das complicações por procedimentos estéticos pode agir profilaticamente contra danos à saúde dos indivíduos, sofrimento das famílias e gastos no sistema de saúde.
A busca de casos de óbitos relatados na mídia é uma ferramenta que se soma aos outros métodos disponíveis na literatura. Entre os 102 casos de morte estudados, o tromboembolismo foi a causa mortis mais citada, e os óbitos ocorreram em sua maioria nos sete primeiros dias de pós-operatório. Não houve relação entre a ocorrência dos óbitos e a realização de mais de um procedimento no mesmo ato cirúrgico nem com o local em que foram realizadas as cirurgias.
Érico Pampado Di Santis | 0000-0001-5782-9205
Contribuição no artigo: Concepção, planejamento, análise dos dados, redação do artigo ou sua revisão intelectual crítica e responsabilidade pela aprovação final para publicação.
Samira Yarak | 0000-0002-5657-6645
Contribuição no artigo: Concepção, planejamento, análise dos dados, redação do artigo e responsabilidade pela aprovação final para publicação.
Marcos Roberto Martins | 0000-0001-7985-0910
Contribuição no artigo: Análise de dados, redação e responsabilidade pela aprovação final para publicação.
Sergio Henrique Hirata | 000-0003-4026-9664
Contribuição no artigo: Análise de dados, redação e responsabilidade pela aprovação final para publicação.
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