Marisa Gonzaga da Cunha1; Ana Lúcia Gonzaga da Cunha2; Carlos A. Machado3
Keywords: GORDURA SUBCUTÂNEA; TECIDO ADIPOSO; TELA SUBCUTÂNEA.
O desenvolvimento de tecnologias baseadas no uso de tecido adiposo autólogo tem atraído a atenção para os depósitos de gordura que representam um quase ilimitado reservatório de células-tronco (stem cells) acessíveis através de procedimentos minimamente invasivos. Alguns desses depósitos nunca haviam sido analisados. Um número crescente de estudos experimentais têm demonstrado os potenciais de neoangiogênese e de ação imunomoduladora das stem cells adiposas e de seu uso na terapia de doenças isquêmicas e autoimunes. A ausência de evidências científicas representa uma dificuldade para a escolha do local de coleta de amostras.1
Além disso, o chamado tecido adiposo subcutâneo tem sido recentemente objeto de interesse crescente, uma vez que novas técnicas cirúrgicas e não cirúrgicas têm sido propostas para sua remoção. Esses fatos determinam a necessidade de profundo conhecimento dessa estrutura de origem embriológica no mesoderma, cujas funções são armazenar energia, proteger contra choques mecânicos, permitir a mobilidade sobre estruturas mais profundas e atuar como isolante térmico. Tem ainda efeito cosmético, moldando o contorno corporal.2
Empiricamente o tecido adiposo tem sido assumido pelos cirurgiões como tecido com duas camadas de gordura com diferenças entre seus lóbulos e divididas por uma camada de tecido membranoso, cuja terminologia varia de acordo com os atlas e livros-texto, sendo a expressão fascia superficialis a mais utilizada, embora imprópria e inconsistente.3 O conhecimento da anatomia do tecido adiposo superficial e profundo, denominado por alguns autores sistema fascial superficial (SFS), permite que procedimentos mais racionais e efetivos sejam possíveis, embora sua terminologia varie de autor para autor.4,5 Vários autores têm demonstrado, a partir de estudos da anatomia da parede abdominal, que ela está organizada nas seguintes camadas a partir da superfície: pele (epiderme e derme), tecido adiposo superficial ou areolar (TAS), uma camada horizontal fibrosa de tecido conectivo (camada membranosa ou fascia superficialis), tecido adiposo profundo ou lamelar (TAP), fascia profunda e músculos da parede abdominal.3-5
Lancerotto et al., através da dissecção macroscópica da parede abdominal de 10 cadáveres frescos de diferentes compleições físicas, sendo quatro homens e seis mulheres com idades entre 48-93 anos e idade média de 69 anos, demonstrou que sob a derme foi identificada uma fina camada de tecido adiposo (Superficial Adipose Tissue), formada por lóbulos gordurosos entremeados por septos fibrosos com uma estrutura semelhante a favos de mel e que se apresentava com distribuição uniforme em todo o tecido. Estes septos (reticula cutis superficialis) eram bem definidos e orientados perpendicularmente em direção à superfície e fortemente ancorados à derme. (Figura 1)6 Os lóbulos de gordura estavam organizados em camadas únicas ou múltiplas, dependendo do conteúdo de gordura e da espessura do TAS de cada indivíduo, e não apresentavam nítida diferenciação na distribuição tanto no sentido caudal como cranial, em direção ao tórax. Observou-se que o TAS apresentava alta estabilidade estrutural e nas propriedades elásticas, retornando a seu aspecto e posição iniciais após distensão no teste de compressão.3 Ao estudo histológico, o TAS se caracterizou por septos fibrosos conectando a derme com a fascia superficialis. Esses septos eram compostos por fibras elásticas e colágenas definindo lóbulos ovais-poligonais de células gordurosas,3 formando o que Sbarbati denomina rede colagênica periadipocitária, com compartimentos bem vascularizados por capilares.1 Essa estrutura desempenha importante papel na preservação da integridade celular e pode, consequentemente, influenciar os resultados de transplantes de gordura autóloga1 (Figura 2).
De acordo com essa descrição, observamos que se trata da camada que comumente definimos como hipoderme. A despeito da clara distinção anatômica entre derme e hipoderme, as duas são estrutural e funcionalmente integradas através da rede de vasos e nervos e pela presença dos apêndices epidérmicos.2 O TAS ou tecido areolar recobre praticamente todo o corpo com disposição em compartimentos verticais, distribuídos perpendicularmente às camadas mais superficiais da pele. No ganho de peso aumenta em espessura.5,6 Com a idade e o fotodano, assim como a derme, relaxa e estica resultando na ptose dos tecidos moles e formação de deformidades por pseudodepósitos de gordura.4
Após a remoção do TAS, Lancerotto et al. observaram uma camada fibrosa com aparência membranosa, aparentemente contínua e macroscopicamente bem organizada, com diferentes espessuras ao longo da parede abdominal, sendo mais espessa no abdômen inferior. Essa membrana fundia-se medialmente com a linha alba, na direção caudal com o ligamento inguinal e nas proeminências ósseas da crista ilíaca; cranialmente continuava em direção ao tórax.3 Histologicamente, essa camada membranosa apresentava múltiplas subcamadas de tecido fibroelástico constituído por bandas de colágeno distribuídas em diferentes direções, com pontos de intersecção entre elas e com finas ilhas irregulares de células adiposas, depositadas entre as fibras de colágeno, com o aspecto de lamelas.3,5
Após a remoção da camada fibrosa, Lancerotto et al. descrevem outra camada de tecido adiposo (tecido adiposo profundo - TAP), que Gasperoni et al. denominam camada lamelar. Difere da TAS pela aparência: apresenta lóbulos de gordura maiores, achatados e menos definidos, com septos fibrosos menos evidentes, em geral orientados obliquamente e conectados à camada membranosa da fascia profunda dos músculos da parede abdominal.3 Sbarbati et al. descrevem essa camada a partir da rede colagênica periadipocitária como incompleta, extremamente frágil e finamente aderente, com poucos componentes vasculares, o que aparentemente a caracteriza como área de alta deposição lipídica1 (Figura 3).
A camada TAP ou tecido lamelar recobre a fascia profunda e a musculatura abdominal, apresentando significante variação de espessura, sendo mais fina com redução do componente adiposo nas áreas de aderência da camada fibrosa (ligamento inguinal, linha alba e proeminências ósseas). Sua espessura variou em conteúdo adiposo e resistência mecânica entre os indivíduos. A distribuição oblíqua dos septos, as limitadas propriedades de elasticidade ao estiramento e sua baixa resistência à compressão explicam o deslizamento desse tecido subcutâneo sobre a fascia profunda.3,5
A TAP está presente somente em determinadas áreas do corpo: abdômen, flancos, região trocantérica, parte interna do terço superior das coxas, joelhos e parte posterior dos braços. No ganho de peso é a responsável pelas deformidades localizadas, quando proporcionalmente aumenta mais em espessura do que a TAS.5
Lancerotto et al. observaram ainda que TAS e TAP apresentam comportamentos diferentes dependendo do local de acúmulo. Na TAS, a espessura foi praticamente uniforme ao redor do tronco. A TAP tendeu a ser fina na parte anterior, especialmente anterolateralmente sobre o músculo oblíquo externo e apresentou espessura máxima posterolateralmente no nível dos flancos, onde um acúmulo foi encontrado.3 Além disso, a espessura de ambos TAS e TAP variou de acordo com o indivíduo: em obesos a média da medida de espessura foi no TAS 17,18mm e no TAP 18,5mm; em indivíduos de peso normal os valores foram 3,66mm e 3,14mm respectivamente. Tanto em obesos como em magros, a espessura do TAP aumentou progressivamente no sentido de T10 para a cabeça do fêmur, enquanto a espessura do TAS aumentou na mesma direção somente em obesos.3
Assim, os estudos destacam que a distribuição do tecido adiposo superficial e profundo (SFS) varia nas diversas áreas do corpo e de pessoa para pessoa de acordo com o peso e o sexo, pois em certas regiões consiste de várias camadas de gordura e na obesidade sua distribuição é quase indistinta. A anatomia distingue áreas do corpo com ambas as camadas (TAS e TAP) e regiões que exibem somente a TAS. As variações do SFS entre os sexos implicam diferenças do contorno corporal e localização dos acúmulos de gordura. Nos membros inferiores de ambos os sexos, por exemplo, observamos somente TAS na parte anterior da coxa, nas partes interna, externa e posterior da porção medial das coxas, nos tornozelos e na parte anterior dos braços. Já a região trocantérica na mulher apresenta arranjo peculiar com os septos fibrosos da TAP firmes e densos e a gordura compacta, lembrando a da TAS, em que os lipídeos são mobilizados numa taxa menor e sintetizados numa taxa maior do que na região abdominal.5 Dessa maneira, as mulheres têm 51% de TAP no abdômen enquanto os homens apresentam 66%.7 Em algumas áreas do corpo, o SFS se prende firmemente à fascia muscular do músculo adjacente ou periósteo formando áreas de aderências, como na linha média anterior e posterior do tronco, e nos sulcos inframamários, inguinais e glúteos. Em homens, o SFS está firmemente aderido à região da crista ilíaca, enquanto na mulher a zona de aderência está vários centímetros abaixo, determinando as diferenças do contorno do tronco.5 Para alguns autores, o polimorfismo do tecido adiposo pode sugerir que se trata de entidades diferenciadas dependendo de sua localização. Os dados obtidos em grupos de pacientes de diferentes idades indicam que a especialização dos adipócitos e seu metabolismo podem ser em parte relacionados com o modo de vida do indivíduo. O emagrecimento é acompanhado por um aumento na taxa de mobilização e uma diminuição na taxa de síntese de gordura em todos os tecidos, embora essa mudança seja mais evidenciada na gordura abdominal do que na femoral.1 Em relação à resistência à insulina, a TAP do abdômen manifesta forte ligação com os aspectos-chave que definem a síndrome de resistência insulínica, num padrão idêntico ao observado para a adiposidade visceral,7 sendo um dos principais responsáveis pelas sequelas metabólicas da obesidade.8
Em terapias restauradoras baseadas no implante de células, a morfologia estrutural da rede periadipocitária e a presença da microcirculação rica em stem cells fazem da TAS o tecido ideal para área doadora, particularmente nos locais em que a malha colágena é fina, como na região trocantérica e na parte interna dos joelhos.1
A lipoaspiração tradicional trata a camada adiposa profunda ou TAP, evitando a camada superficial, cuja retirada causa irregularidades de contorno (Figura 4). Por outro lado, a espessura da TAS diminui com a perda de peso.5
A celulite ou lipodistrofia ginoide (LDG) é patologia exclusiva do sexo feminino pelas características anatômicas do TAS. No homem, os septos fibrosos são menores e arranjados em planos oblíquos com pequenos lóbulos de gordura, enquanto na mulher os lóbulos são maiores e com septos paralelos (Figura 5). Essas condições existem desde o nascimento, porém na puberdade, com as mudanças hormonais, ocorrem maior armazenamento de gordura e retenção hídrica intersticial, com os lóbulos de gordura tornando-se aumentados por hipertrofia dos adipócitos secundária às alterações vasculares9,10 (Figura 6).8
O tecido adiposo deve e precisa ser dividido em duas camadas distintas: hipoderme (TAS) e tecido celular subcutâneo (TAP), pois são camadas que apresentam anatomia, histologia e metabolismo completamente distintos (Quadros 1 e 2).
A identificação de novos aspectos da fisiologia do adipócito e sua correta distinção não estão relacionadas somente à biologia da pele, mas se tornam de fundamental importância para entender melhor a dinâmica do emagrecimento e da deposição de gordura localizada. Quando alguns investigadores se referem à gordura subcutânea ou camada adiposa sem observação precisa do que está sendo descrito anatômica e histologicamente, é impossível saber sobre qual tecido está sendo feita a referência.11
Sem dúvida, novos estudos trarão à luz conceitos até então desconhecidos sobre a fisiopatologia dos adipócitos, suas diferenças ultraestruturais e metabólicas, que levarão ao melhor entendimento a respeito de seu comportamento de acordo com a localização corpórea e, consequentemente, nos permitirá determinar mais precisamente a abordagem terapêutica mais adequada.
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Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) - Santo André (SP), Brasil.