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Artigo Original

Qualidade de vida nos portadores de queloide auricular

Gabriela Irene Garcia Brandes; Luís Henrique Barbizan de Moura; João Marcos Góes de Paiva; Samira Yarak

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.2024160303

Fonte de financiamento: Bolsa - PIBIC.
Conflito de interesses: Nenhum.
Data de Submissão: 18/09/2023
Decisão final: 07/01/2024
Como citar este artigo: Brandes GIG, Moura LHB, Paiva JMG, Yarak S. Qualidade de vida nos portadores de queloide auricular. Surg Cosmet Dermatol. 2024;16:e20240303.


Abstract

INTRODUÇÃO: queloides são proliferações anormais de tecido cicatricial que não regridem espontaneamente. São raras as investigações sobre a qualidade de vida em pacientes com queloide auricular. Trata-se de uma queixa frequente e localizada em um sítio de grande visibilidade.
OBJETIVO: avaliar o impacto dos queloides auriculares na qualidade de vida de seus portadores, a fim de demonstrar que sintomas psicológicos e físicos são frequentes e impactantes para os pacientes.
MÉTODOS: trata-se de um estudo analítico observacional do tipo transversal conduzido em São Paulo. Pacientes com queloide auricular responderam ao questionário QualiFibro, validado e específico para o tema.
RESULTADOS: foram analisados 17 pacientes com queloide auricular. O questionário evidenciou que a maioria dos participantes apresentou algum grau de prejuízo físico (76% dos pacientes reportaram prurido e 58% reportaram dor em seus queloides). Todos os participantes apresentaram prejuízo psicológico em graus variados.
CONCLUSÃO: os pacientes frequentemente relacionaram seus queloides a sentimentos de vergonha e baixa autoestima. Acreditamos que trazer visibilidade para a repercussão psicológica negativa desta patologia pode auxiliar o dermatologista a compreender melhor os anseios destes pacientes e acolhê-los empaticamente, com o objetivo de fazer com que eles se sintam mais confortáveis em sua própria pele.


Keywords: Queloide; Qualidade de Vida; Pavilhão Auricular.


INTRODUÇÃO

A primeira descrição de queloide referente ao trauma cirúrgico foi em papiro no ano de 1700 a.C. Em 1806, Alibert utilizou o termo queloide derivado do grego (Khelé), que significa pinças de caranguejo, em virtude do crescimento lateral do tecido em direção à pele não afetada.1 Queloides são proliferações anormais de tecido cicatricial, que se formam durante o processo de cicatrização em indivíduos predispostos, podendo causar sintomas como dor, desconforto, prurido e até mesmo restrição dos movimentos. Manifestam-se como tumores benignos fibroproliferativos, de cor variável (eritematosos a eritêmato-acastanhados), de consistência elástica a endurecida, superfície lisa e, às vezes, podem apresentar áreas focais de ulceração. O crescimento do queloide não regride espontaneamente e cresce além das margens originais da cicatriz, raramente invadindo o tecido subcutâneo. Não deve ser confundido com cicatrizes hipertróficas, que também são elevadas, porém não crescem além das margens originais e podem regredir com o tempo. Queloides surgem apenas nos humanos, com idade média inicial de 10 a 30 anos, sem prevalência por gênero, e ocorrem em 5 a 15% das cicatrizes.2 São mais comuns em pessoas de fototipos mais altos, chegando a afetar até 16% deste grupo.3 Eles ocorrem mais frequentemente em lóbulo da orelha, tórax anterior, superfície anterior do pescoço, ombros, braços e em feridas perpendiculares às linhas de tensão da pele4, sendo o lóbulo da orelha o sítio mais afetado.5 Apesar de a fisiopatologia na sua formação permanecer desconhecida, acredita-se que há um desequilíbrio entre as fases anabólica e catabólica do processo cicatricial, permitindo maior produção do colágeno do que a sua degradação.6,7 O fator de risco mais importante para o desenvolvimento do queloide é a cicatrização por segunda intenção, especialmente se o tempo de cicatrização for maior que três semanas. Também são considerados fatores de risco: feridas com inflamação prolongada (reação a corpo estranho, infecção ou queimadura), predisposição genética e propensão individual em formar queloides.8,9 Os queloides auriculares associam-se principalmente ao uso de brincos e a queimaduras térmicas, podendo acometer hélice, anti-hélice e lóbulos. Atualmente, há um aumento na incidência de queloides após a realização de piercings, em especial no pavilhão auricular de jovens de fototipo alto.10,11 A incidência de queloides auriculares é de 2,5% em todas as perfurações da orelha, e a perfuração da orelha após a idade de 11 anos está associada a uma maior incidência de formação de queloides. Eles também podem surgir após drenagem de hematomas auriculares, reparação de trauma auricular e como recorrências secundárias da excisão de queloides preexistentes.12,13

Há diversas modalidades de tratamento, mas nenhuma é mais eficaz que a outra, e as taxas de recidivas são altas. Tratamentos combinados parecem ser mais eficazes, com taxas de recidiva inferiores em relação à monoterapia.14 Como não há guidelines para tratamento dos queloides, tenta-se, entre as diversas modalidades de tratamento existentes, alcançar a terapêutica que apresente o menor índice de recidivas, já que essas lesões podem provocar alterações estéticas, funcionais, além de impactar a qualidade de vida de seus portadores.6, 7, 15 Os queloides auriculares apresentam-se como uma queixa frequente nos consultórios de dermatologistas, porém investigações da qualidade de vida em pacientes com queloides auriculares são raras. O objetivo deste estudo foi investigar o impacto do queloide auricular na qualidade de vida de seus portadores, de maneira a mensurar a gravidade e as repercussões físicas e psicológicas na vida desses pacientes.

 

MATERIAIS E MÉTODO

Foi realizado um estudo analítico observacional do tipo transversal, conduzido na UNICCO - Unidade de Cosmiatria e Cirurgia Oncológica da Universidade Federal de São Paulo, na cidade de São Paulo. O objetivo principal do estudo foi avaliar o impacto do queloide auricular na qualidade de vida de seus portadores por meio do questionário QualiFibro (Tabela 1), validado para tal finalidade. O projeto foi aprovado pela Coordenadoria de Ensino e Pesquisa do Hospital São Paulo (Parecer 242/2016) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UNIFESP) (Parecer 0797/2016). Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participar da pesquisa. A população a ser incluída no estudo foi uma amostragem não probabilística dos portadores de queloide auricular atendidos em nosso ambulatório, de ambos os sexos, de 12 a 60 anos, que assinassem o termo de esclarecimento e consentimento quanto ao procedimento para responder ao questionário. Os pacientes recrutados passaram em consulta médica para análise de parâmetros demográficos e clínicos e a autoaplicação do questionário QualiFibro. Os critérios de exclusão foram pacientes com doença clínica, neurológica ou psiquiátrica descompensada ou que tivessem dificuldades para entendimento dos objetivos deste estudo. Foram coletados parâmetros demográficos (sexo, idade, fototipo, naturalidade, procedência), local do queloide, dor (escala de 0 a 10), prurido (escala de 0 a 10), presença de ulceração e tamanho do queloide auricular. A seguir, o paciente era orientado a realizar o preenchimento do QualiFibro (Tabela 1), questionário validado de Bock et al.16 e traduzido para o Português por Furtado et al.17 para pacientes com cicatrizes fibroproliferativas. O QualiFibro é um questionário específico e autoaplicável, composto por 14 itens que compreendem os domínios físico e psicológico. O domínio psicológico é composto pelos itens nº 3, 5, 7, 9, 10, 11, 12, 13 e 14; e o domínio físico é avaliado pelos itens nº 1, 2, 4, 6 e 8. Há ainda uma pergunta acerca da intenção de cometer suicídio (item nº 15). De acordo com a resposta assinalada, cada item poderá receber um dos seguintes valores: -5, -3, -1, +1, +3 ou +5. Quanto mais próximo de +5 for o escore, maior o impacto do queloide na vida do paciente, ocasionando uma pior qualidade de vida.

Os questionários de qualidade de vida específicos são capazes de mensurar a gravidade e evolução das repercussões físicas e psicológicas na vida dos pacientes, além de poder mensurar, nesses indivíduos, os resultados de intervenções terapêuticas. Para calcular os escores finais, foi realizada uma média aritmética dos valores obtidos, separando-se as perguntas de aspecto físico daquelas de aspecto psíquico.

 

RESULTADOS

Este estudo consistiu em um N de 17 pacientes, sendo 7 mulheres e 10 homens, com idades entre 15 a 57 anos (média de 25 anos), todos procedentes da cidade de São Paulo. Houve predomínio de fototipos mais altos, sendo 88% dos pacientes de fototipo III ou maior. O tamanho dos queloides variou de 0,5 a 5cm no maior eixo, com média de 2,3cm. O local mais comumente afetado foi o lóbulo da orelha (82%), com predomínio de localização posterior (65%) e à esquerda (66%). Nenhum dos pacientes apresentou queloide com ulceração. Em relação à escala de prurido nos queloides, que variava de 0 (sem prurido) a 10 (prurido máximo), a média das respostas foi de 4,58. 13 pacientes (76%) indicaram sentir algum grau de prurido em suas cicatrizes e três deles referiram sentir prurido máximo. Quanto à escala de dor, mais da metade (58%) dos pacientes referiu sentir algum grau de dor em suas cicatrizes, sendo a média de 3,52. Na análise das respostas do questionário QualiFibro, o domínio físico apresentou escore médio de -1,49. Os valores variaram entre -5 (menor impacto apresentado) e +4,6 (maior impacto), caracterizando um grupo bem heterogêneo. Já na escala de prejuízos psicológicos, o escore médio foi de +0,20. Os escores individuais deste domínio variaram entre -4,55 a +4,55. Quase todos os pacientes negaram já ter pensado em cometer suicídio, porém um deles relatou que já pensou fortemente (escore +5) em se suicidar por conta de seus queloides.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, foi possível observar a variação da gama de sintomas que os portadores de queloide auricular apresentam, com impacto na autoestima e autoimagem corporal. A maioria dos pacientes apresentou escore considerável nos aspectos de prejuízos psicológicos do questionário QualiFibro, revelando associação entre os queloides auriculares e sentimento de vergonha, dificuldade de autoaceitação, baixa autoestima e até mesmo prejuízo na vida sexual. No aspecto físico, a maioria dos pacientes negou ter seus movimentos restringidos por seus queloides auriculares, algo já esperado nesta localização anatômica. O aspecto que mais chamou a atenção neste domínio foi o prurido, presente na maioria dos casos. Pacientes com queloide auricular sofrem como outros pacientes que apresentam doenças cutâneas crônicas. A piora em sua qualidade de vida é diretamente influenciada pela estigmatização, sendo ela frequentemente mais importante do que a doença física em si, inclusive, em nosso estudo, observamos que a maioria dos pacientes apresentou prejuízo psicológico mais relevante do que físico. Este é o primeiro estudo que avalia a qualidade de vida por meio do questionário QualiFibro aplicado apenas e especificamente para pacientes com queloides auriculares. Julgamos que o estudo da qualidade de vida nesta população é importante devido ao possível impacto desta patologia na vida laboral, acadêmica e nas relações interpessoais de nossos pacientes. As limitações deste estudo são o número pequeno de participantes, permitindo apenas análise descritiva, já que um número maior permitiria análise inferencial dos dados. Ademais, trata-se de um estudo transversal e observacional. Perspectivas futuras englobam a realização de estudo intervencional e prospectivo, com análise da qualidade de vida antes e depois da terapia reparadora. O tratamento do queloide auricular continua sendo desafiador, com necessidade de tratamento combinado para melhor taxa de sucesso terapêutico.18 Julgamos que o tratamento tem o potencial de melhorar substancialmente a qualidade de vida dos nossos pacientes com queloide auricular e, por isso, há a necessidade de mais estudos.

 

CONCLUSÃO

Apesar da variação da gama de sintomas, todos os pacientes, sem exceção, associaram seus queloides a algum grau de impacto negativo em sua qualidade de vida. O dermatologista deve se atentar para o fato de que o acolhimento e a escuta deste paciente fragilizado é de suma importância no manejo desta patologia, uma vez que, frequentemente, o paciente apresentará sintomas psicológicos e somáticos potencialmente angustiantes, ocasionando impacto significativo na sua qualidade de vida.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Gabriela Irene Garcia Brandes
ORCID:
-0002-7759-7664
Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Luís Henrique Barbizan de Moura
ORCID:
-0002-5714-8386
Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
João Marcos Góes de Paiva
ORCID:
0009-0000-8039-0501
Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Samira Yarak
ORCID:
-0002-5657-6645
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

 

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