Luana Rampazzo Magalhães1; Thais Helena Buffo2; Elemir Macedo de Souza2; Renata Ferreira Magalhães2; Andréa Fernandes Eloy da Costa França2; Rafael Fantelli Stelinit3
Fonte de financiamento: Bolsa de iniciação científica CNPq (Magalhães LR).
Conflito de interesses: Nenhum.
Como citar este artigo: Magalhães LR, Buffo TH, Stelini RF, Souza EL, Magalhães RF, França AFEC. Incidência de casos de carcinoma epidermoide desenvolvido sobre dermatoses inflamatórias, seguidos em um hospital terciário entre os anos 2000 e 2020. Surg Cosmet Dermatol. 2023;15:e20230248.
INTRODUÇÃO: o advento de carcinomas epidermoides a partir de dermatoses crônicas é conhecido, porém pouco explorado. Embora raros, os tumores daí originados possuem pior prognóstico, em parte devido ao diagnóstico tardio.
OBJETIVOS: realizar o levantamento dos casos de carcinomas epidermoides desenvolvidos sobre dermatoses prévias, diagnosticados entre os anos 2000 e 2020, em um serviço terciário de saúde.
MÉTODOS: trata-se de um estudo quantitativo e retrospectivo, obtido a partir do levantamento de laudos de biópsias e revisão de prontuários.
RESULTADOS: a partir de uma lista inicial de 11.249 laudos histológicos compatíveis com carcinoma epidermoide, foi obtida uma lista final com 10 pacientes. Os achados do estudo corroboram a literatura quanto a alguns fatores de risco já conhecidos: exposição abundante e crônica ao sol, idade acima dos 50 anos, fototipos mais baixos e imunossupressão. Foi encontrada também uma alta frequência de tabagismo e de dermatoses liquenoides (5/10 pacientes) na população estudada, entre elas o lúpus eritematoso cutâneo crônico e o líquen plano hipertrófico.
CONCLUSÕES: não é possível predizer os fatores de risco mais importantes para o desenvolvimento de carcinomas epidermoides sobre dermatoses prévias, embora haja uma tendência do seu aparecimento sobre dermatoses liquenoides, assim como naquelas de evolução mais longa.
Keywords: Dermatopatias; Carcinoma de células escamosas; Lúpus eritematoso cutâneo; Líquen plano
O advento de carcinomas epidermoides (CECs) a partir de dermatoses crônicas é um fenômeno conhecido, porém pouco explorado. Úlcera de Marjolin é a denominação da transformação maligna que ocorre em úlceras crônicas e cicatrizes de queimaduras. Embora raros, os CECs daí originados possuem pior prognóstico, em parte devido ao diagnóstico tardio. Menos relatada é a transformação neoplásica a partir de dermatoses inflamatórias. Há descrição do aparecimento de CECs sobre lesões de lúpus eritematoso crônico discoide, líquen plano, líquen escleroso e atrófico, hidradenite supurativa e epidermólise bolhosa distrófica.1-12 A patogênese dos CECs oriundos dessas dermatoses é diferente daquela relacionada à exposição solar crônica, embora o mecanismo não seja verdadeiramente conhecido. A teoria mais aceita é a de que as áreas de ocorrência da neoplasia correspondam a um “território cutâneo imunologicamente comprometido”.12
Sendo assim, muitas dermatoses inflamatórias crônicas exigem atenção no seu diagnóstico e no seu seguimento, a fim de se obter um diagnóstico precoce, caso evoluam para CEC. Estudos dessas lesões tornam-se de extrema importância, em especial para identificar fatores adicionais que possam predispor ao CEC ou características clínicas que permitam o diagnóstico mais rápido da neoplasia, considerando-se o seu pior prognóstico. O presente trabalho teve como objetivo realizar o levantamento e a caracterização dos casos de CEC desenvolvido sobre dermatoses inflamatórias prévias, diagnosticados entre os anos 2000 e 2020 em um hospital terciário.
Trata-se de um estudo quantitativo e retrospectivo, realizado a partir da revisão de prontuários de pacientes acompanhados em um serviço terciário de saúde da cidade de Campinas (SP, Brasil). Para obtenção das informações, foi realizado um levantamento inicial cruzando-se os termos “carcinoma epidermoide” e “pele” descritos pelo sistema SNOMED na base de dados da instituição no período. SNOMED é um sistema global padronizado de nomenclatura para termos em saúde, utilizado pelo Departamento de Anatomia Patológica para classificar os laudos histológicos. O setor de informática da instituição usa a nomenclatura SNOMED para correlacionar os laudos histológicos à base de dados clínicos, permitindo uma pesquisa mais fidedigna. Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, filtros sucessivos foram usados de modo a obter uma lista final composta apenas por pacientes com laudos histológicos de CEC que também possuíssem biópsias de dermatoses inflamatórias diagnosticadas. Os prontuários listados foram revisados para identificação da associação entre o surgimento do CEC sobre uma dermatose prévia e, sendo este o caso, foram coletados os dados para análise.
Em relação aos prontuários de pacientes que apresentaram CEC sobre uma dermatose prévia, foram levantados os seguintes dados:
a) Características epidemiológicas do paciente: gênero, idade ao diagnóstico do CEC, idade ao diagnóstico da dermatose prévia, fototipo/cor da pele, fatores de risco para o desenvolvimento de CEC (tabagismo, exposição solar);
b) Características do CEC: local da lesão, grau de diferenciação, tratamento realizado e evolução;
c) Características da dermatose prévia: diagnóstico, tempo de evolução, tratamentos com imunossupressores e resposta, e evolução pós-neoplasia.
Os critérios de inclusão no estudo foram: a) indivíduos com laudos anatomopatológicos compatíveis com CEC cutâneo, realizados no Serviço de Anatomia Patológica da instituição, que tivessem realizado o seguimento da neoplasia no mesmo hospital. Não houve idade mínima ou máxima para a inclusão no estudo. Não foram incluídos no estudo pacientes com o diagnóstico histológico de CEC de mucosas, CEC oriundo de cicatrizes crônicas - como úlceras e queimaduras - e CEC associado a síndromes genéticas que predisponham à fotossensibilidade ou a defeito de reparação do DNA, como xeroderma pigmentoso e epidermodisplasia verruciforme.
Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da referida instituição, previamente à realização do levantamento dos dados.
Foram realizadas análises descritivas da prevalência de CEC relacionadas às dermatoses inflamatórias prévias.
A busca inicial resultante do cruzamento dos termos “carcinoma epidermoide” e “pele” a partir do sistema SNOMED gerou uma lista com 11.249 laudos histológicos, registrados entre os anos 2000 e 2020.
Sobre essa lista foram aplicados os critérios de inclusão e exclusão, além de filtros sucessivos. Laudos histológicos identificados a partir dos seguintes filtros permaneceram na lista: hiperplasia, fibrose, verruga, doença de Bowen, papiloma, somente descrição morfológica, úlcera, vascularização sem evidência de malignidade e deposição de materiais estranhos. Laudos histológicos identificados a partir dos seguintes filtros foram removidos da lista: lipoma, lentigo, adenoma sebáceo, tricoepitelioma, nevo, cisto, melanose, neoplasia metastática, ceratoacantoma, carcinoma basocelular, ceratose, histiocitoma fibroso e sarcoma. Após o agrupamento dos casos de CEC por paciente, foram encontrados 2.296 pacientes elegíveis que tiveram o diagnóstico de CEC entre os anos de 2000 e 2020, descritos na tabela 1.
Após exclusão dos pacientes que possuíam apenas laudos histológicos compatíveis com CEC, novos filtros foram aplicados até a obtenção de uma lista dos pacientes que possuíam laudos histológicos de CEC e “inflamação crônica” ou algum diagnóstico dermatológico. Esses descritivos dos laudos histológicos foram revisados até obtermos uma lista final com 10 pacientes. As características epidemiológicas desses pacientes, além das características dos CECs e dos possíveis fatores relacionados ao desenvolvimento das neoplasias, estão descritas na tabela 2.
Os dados obtidos permitiram classificar os casos de CEC em dois grupos a partir do tipo de dermatose prévia: a) CEC a partir de dermatoses liquenoides, em que foram incluídos os quatro casos de lúpus eritematoso crônico e um caso de líquen plano hipertrófico (Figuras 1 e 2); e b) CEC a partir de outras dermatoses inflamatórias, em que foram incluídas doenças como a hidradenite supurativa, psoríase etc.
Com base nos resultados do presente estudo, pôde-se perceber a raridade dos casos de CEC que decorrem de uma lesão por inflamação crônica. Embora não tenha sido objeto da pesquisa, foram encontrados três pacientes com úlceras de Marjolin, demonstrando que a casuística de CEC a partir de dermatoses inflamatórias no período estudado foi maior.
Os dados encontrados corroboram a literatura quanto a alguns fatores de risco para CEC: exposição abundante e crônica ao sol (seis pacientes), idade acima dos 50 anos (oito pacientes), fototipos mais baixos (sete pacientes), tabagismo (sete pacientes) e imunossupressão (quatro pacientes). Vale ressaltar que a imunossupressão encontrada estava relacionada ao uso das seguintes medicações: metotrexato, ciclosporina e terapia antirretroviral, envolvendo os pacientes com psoríase, hidradenite e um com infecção pelo HIV. Por outro lado, apesar de a literatura apontar que o sexo masculino tem maior predisposição para CEC, o presente estudo mostrou uma relação homem: mulher de 3:2, inferior à descrita na literatura. Para além dos fatores de risco já conhecidos para o desenvolvimento de CEC cutâneo, houve uma prevalência das dermatoses liquenoides (cinco pacientes) na população estudada em relação a todas as outras dermatoses inflamatórias.
A ocorrência de CEC costuma ser um evento tardio na evolução das lesões de lúpus eritematoso cutâneo crônico (LECC). Apesar disso, pacientes lúpicos apresentam um risco 3,6 vezes maior de desenvolver câncer de pele não melanoma. Os locais mais acometidos por CEC nesses pacientes são os expostos mais frequentemente à luz solar.
Fatores que predispõem à transformação do LECC em CEC compreendem: infecção pelo HPV, exposição à luz ultravioleta, terapia imunossupressora de longo prazo, cicatrizes e condições crônicas. Tais condições promovem o desenvolvimento de queratinócitos com imunofenótipo ativado que precede a malignização.1-5
A relação entre LECC e CEC nem sempre é de fácil identificação, devido à apresentação clínica variada. A confirmação histológica é imprescindível, embora o próprio LE, especialmente na sua forma hipertrófica, possa apresentar alterações que mimetizam o CEC.
O CEC secundário a processos inflamatórios como o LE cutâneo tem taxa de metástase mais alta do que aqueles que se desenvolvem usualmente por dano solar apenas. Sendo assim, o diagnóstico precoce é extremamente importante para a rápida identificação de lesões suspeitas nesses pacientes, evitando um maior acometimento da pele do indivíduo e ofertando um tratamento mais rápido e efetivo, que implique menor morbimortalidade.
Em relação ao líquen plano (LP), a transformação neoplásica sobre lesões orais de doença é descrita, com uma taxa variando de 0,3 a 3%, sendo o LP oral considerado dermatose pré-neoplásica. Já na sua forma cutânea, essa ocorrência é considerada fortuita, com menos de 50 relatos na literatura e frequência inferior a 0,4%. Apesar disso, o LP hipertrófico é a apresentação mais associada à malignização.6-10
Para as dermatoses liquenoides, acredita-se que o estado inflamatório crônico assim como a renovação celular acelerada proporcionam um ambiente fértil para o desenvolvimento de neoplasias. Cofatores, como radiações ionizantes, tratamento com radiação ultravioleta ou uso de imunossupressores, podem interferir para a evolução do quadro.
A realização do estudo em um serviço terciário de saúde pode superestimar a incidência de CEC sobre dermatoses inflamatórias crônicas, sendo uma limitação do presente estudo. Outrossim, a associação a outras dermatoses pode estar subestimada como, por exemplo, o CEC decorrente de líquen escleroso, já que essa patologia tem ocorrência preferencialmente na genitália feminina, e pode estar mais presente nos centros de atendimento ginecológico.
A prevalência de CEC sobre dermatoses crônicas é muito rara. Embora fatores de risco como tabagismo, exposição solar crônica, idade avançada e imunossupressão tenham sido encontrados em nossa população, não é possível afirmar que são os fatores mais importantes para o desenvolvimento da neoplasia. Há uma tendência dos CECs se desenvolverem sobre dermatoses liquenoides, assim como nas dermatoses de evolução mais longa.
1. Fernandes MS, Girisha BS, Viswanathan N, Sripathi H, Noronha TM. Discoid lupus erythematosus with squamous cell carcinoma: a case report and review of the literature in indian patients. Lupus. 2015;24(14):1562-6.
2. Flower C, Gaskin D, Bhamjee S, Bynoe Z. High-risk variants of cutaneous squamous cell carcinoma in patients with discoid lupus erythematosus: a case series. Lupus. 2013;22(7):736-9.
3. Grönhagen CM, Fored CM, Granath F, Nyberg F. Increased risk of cancer among 3663 patients with cutaneous lupus erythematosus: a swedish nationwide cohort study. Br J Dermatol. 2012;166(5):1053-9.
4. Tao J, Zhang X, Guo N, Chen S, Huang C, Zheng L, et al. Squamous cell carcinoma complicating discoid lupus erythematosus in chinese patients: review of the literature, 1964-2010. J Am Acad Dermatol. 2012;66(4):695-6.
5. Harper JG, Pilcher MF, Szlam S, Lind DS. Squamous cell carcinoma in an african american with discoid lupus erythematosus: a case report and review of the literature. South Med J. 2010;103(3):256-9.
6. Ghosh S, Kotne S, Rao PBA, Turlapati SP, Soren DK. Squamous cell carcinoma developing in a cutaneous lichen planus lesion: a rare case. Case Rep Dermatol Med. 2014;2014:205638.
7. Idriss MH, Barbosa N, Chang MB, Gibson L, Baum CL, Vidal NY. Concomitant hypertrophic lichen planus and squamous cell carcinoma: clinical features and treatment outcomes. Int J Dermatol. 2022;61(12):1527-31.
8. Krasowska D, Kozłowicz K, Kowal M, Kurylcio A, Budzyńska-Włodarczyk J, Polkowski W, et al. Twice malignant transformation of hypertrophic lichen planus. Ann Agric Environ Med. 2012;19(4):787-9.
9. Manz B, Paasch U, Sticherling M. Squamous cell carcinoma as a complication of long-standing hypertrophic lichen planus. Int J Dermatol. 2005;44(9):773-4.
10. Singh SK, Saikia UN, Ajith C, Kumar B. Squamous cell carcinoma arising from hypertrophic lichen planus. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2006;20(6):745-6.
11. Kim M, Murrell DF. Update on the pathogenesis of squamous cell carcinoma development in recessive dystrophic epidermolysis bullosa. Eur J Dermatol. 2015;25(Suppl 1):30-2.
12. Fabbrocini G, Ruocco E, Vita V, Monfrecola G. Squamous cell carcinoma arising in long-standing hidradenitis suppurativa: an overlooked facet of the immunocompromised district. Clin Dermatol. 2017;35(2):225-7.
Luana Rampazzo Magalhães 0009-0001-6556-9877
Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura.
Thais Helena Buffo 0000-0002-6833-7596
Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Rafael Fantelli Stelinit 0000-0003-0618-1693
Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Elemir Macedo de Souza 0000-0002-3944-0711
Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Renata Ferreira Magalhães 0000-0001-9170-932X
Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Andréa Fernandes Eloy da Costa França 0000-0003-1657-4570
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.