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Artigo Original

Reconstrução palpebral com enxerto condro-pericondral de hélice de orelha. Experiência de um centro de referência em cirurgia micrográfica de Mohs

Frederico Hassin Sanchez1; Eduardo Lerner2

Data de recebimento: 13/10/2013
Data de aprovação: 16/12/2013
Suporte financeiro: Nenhum
Conflitos de interesse: Nenhum

Abstract

Introdução: A pálpebra inferior frequentemente é sede de carcinomas basocelulares, sendo ideal para seu tratamento a cirurgia micrográfica de Mohs, que permite controle histológico preciso, com máxima preservação tecidual. Os tumores que invadem a lamela posterior, causam defeitos de espessura total da pálpebra inferior, para cuja reconstrução têm sido descritas várias técnicas com enxertos compostos; poucos autores, porém, utilizam a hélice da orelha como área doadora. Objetivo: Descrever a aplicabilidade do enxerto composto de hélice da orelha nas reconstruções de pálpebra inferior. Métodos: Estudo retrospectivo de série de seis casos de carcinoma basocelular em pálpebra inferior, com invasão tarsal, operados pela cirurgia micrográfica de Mohs, em serviço privado de referência nessa técnica no município do Rio de Janeiro, Brasil. Todos os pacientes apresentavam defeitos de espessura total e tiveram reconstrução da lamela posterior através de enxerto condro-pericondral de hélice da orelha. A lamela anterior foi reconstituída com mobilização do tecido palpebral remanescente ou com retalho de avanço. Os pacientes foram avaliados em relação à capacidade funcional e estética. Resultados: Houve completa adaptação do pericôndrio à conjuntiva, após contato com o globo ocular durante oito semanas. Todos os pacientes evoluíram com discreto escleroshow, sem ectrópio. Conclusões: Apesar da amostragem pequena, todos os pacientes tiveram excelentes resultados cosméticos e funcionais.

Keywords: PÁLPEBRAS; CARCINOMA BASOCELULAR; CIRURGIA DE MOHS; CARTILAGEM DA ORELHA.


INTRODUÇÃO

Vários tumores de pele podem acometer a pálpebra inferior e se estender até a região tarsal. O carcinoma basocelular (CBC) é o câncer de pele mais comum, representando cerca de 80% a 95% de todas neoplasias malignas das pálpebras.1,2

O tratamento de escolha para os tumores de pálpebra não melanoma é a cirurgia micrográfica de Mohs (CMM) que alcança maiores taxas de cura, com menores índices de recorrência.3 Permite maior economia de tecido saudável ao redor do tumor, favorecendo a preservação de estruturas nobres e a reconstrução cirúrgica.1-3

A pálpebra inferior tem função de proteção e lubrificação do globo ocular, além de importante papel estético. Defeitos de espessura total da pálpebra requerem a reconstrução de dois elementos fundamentais: lamela anterior, que se constitui de pele, tecido subcutâneo e músculo orbicular, e lamela posterior, constituída por tarso e conjuntiva palpebral.3,4 O tarso inferior é estrutura conjuntiva densa que confere suporte mecânico e estabilidade à palpebra,4 mantendo sua forma e promovendo a adaptação da pálpebra à curvatura do globo ocular, além de conter as glândulas de Meibomius, que secretam material sebáceo importante para manter a lubrificação da córnea.1,3 Está ligado medialmente ao tendão (ou ligamento) cantal medial e lateralmente ao ligamento cantal lateral, que se inserem no rebordo orbitário.

Tumores que invadem a placa tarsal promovem defeitos cirúrgicos de espessura total da pálpebra, sendo que defeitos com até um terço do comprimento total da pálpebra inferior podem ser fechados primariamente; quando excedem esse tamanho, entretanto, é necessária a reconstrução cirúrgica através da confecção de retalhos e/ou enxertos, constituindo grande desafio para o cirurgião dermatológico.5,6

Várias opções de enxerto têm sido descritas para reconstrução da lamela posterior, como os enxertos de mucosa jugal, enxerto mucoso do palato duro,7,8 enxerto condro-mucoso de septo nasal8 e, recentemente em nível experimental, os xenoenxertos de placa ungueal em modelo animal para reconstrução tarsal.9

O enxerto condro-pericondral de orelha foi inicialmente descrito por Matsuo em 1987, usando como área doadora a concha auricular para reconstrução da lamela posterior, combinando com retalho de pele adjacente para restauração da lamela anterior.4 Desde então, vários cirurgiões têm utilizado a concha como área doadora. No presente artigo propomos a utilização da hélice da orelha como área doadora devido a sua menor espessura, à maior maleabilidade da cartilagem e, consequente, à melhor adaptação ao globo ocular, em relação à cartilagem da concha.

 

OBJETIVO

Demonstrar a aplicabilidade da técnica de reconstrução palpebral com enxerto composto condro-pericondral de hélice da orelha quando há perda do tarso inferior após CMM.

 

MÉTODOS

Foram selecionadas seis pacientes do sexo feminino, operadas pela CMM para tratamento de CBC em pálpebra inferior, com invasão do tarso, entre janeiro de 2011 e abril de 2013. Todas foram submetidas à reconstrução cirúrgica através de enxerto de cartilagem e pericôndrio de hélice da orelha. As cirurgias foram realizadas no Centro de Cirurgia Micrográfica do Rio de Janeiro, Brasil, serviço privado de referência em CMM.

Quatro pacientes apresentavam CBC recidivado, sendo que uma delas já havia sido operada duas vezes por método cirúrgico tradicional, tendo o tumor recidivado há menos de um ano de sua última intervenção (Figura 1). Uma das pacientes se havia submetido a quimioterapia tópica com imiquimode e eletrocauterização prévia (Figura 2), e as outras duas se haviam submetido a procedimentos cirúrgicos prévios que, entretanto, não souberam precisar. Todas as pacientes tiveram suas lesões biopsiadas previamente, e o laudo histológico foi de CBC nodular em três casos, micronodular em um caso e infiltrante em dois casos.

Após a exérese das lesões pela CCM e sucessivos estágios de ampliação cirúrgica, houve perda de aproximadamente três quartos da área do tarso em três pacientes (Figura 2) e de aproximadamente dois terços do tarso inferior em três pacientes (Figura 1).

Iniciamos a primeira fase da reconstrução palpebral, visando reconstituir a lamela posterior. O defeito cirúrgico foi devidamente medido, e a área doadora na hélice da orelha ipsilateral demarcada com caneta dermográfica. Uma pequena incisão fusiforme do mesmo comprimento da área receptora foi realizada na parte anterossuperior da hélice da orelha, na região conhecida com fossa escafoide, situada entre a hélice e a antihélice, e uma faixa de aproximadamente três a 4mm de largura da cartilagem com pericôndrio foi cuidadosamente dissecada e colhida para ser enxertada na pálpebra inferior. A tira de cartilagem com a parte coberta com pericôndrio foi posicionada em contato com o globo ocular (Figura 2). O enxerto foi fixado aos tendões cantais medial e lateral, remanescentes na pálpebra operada, e a parte inferior do enxerto fixada, através de sutura com fio absorvível de poligrecapone (Caprofyl® Ethicon,Johnson & Johnson) ou Monocryl® Polysuture) 7.0, ao músculo retrator da pálpebra inferior. Solicitou-se aos pacientes que movessem o globo ocular para cima e para baixo a fim de se avaliar a perfeita adaptação do enxerto em contato com o globo ocular com o objetivo de evitar ceratite e ulcerações na córnea.

Após a fixação do enxerto, iniciamos a segunda fase da reconstrução palpebral visando reconstituir a lamela anterior. Normalmente um retalho miocutâneo ou um simples avançamento do músculo orbicular e pele remanescentes na pálpebra inferior é posicionado sobre o enxerto para sua nutrição. No presente estudo, apenas uma paciente foi submetida a retalho de avançamento simples para cobrir o enxerto. As outras tiveram a reconstrução da lamela anterior com simples deslocamento do tecido remanescente na pálpebra inferior. A pele foi suturada à parte superior do enxerto. Uma sutura de Frost foi feita para prevenir a retração e formação de ectrópio; esse tipo de sutura está indicado quando ocorre tração excessiva na pele (Figura 2).

A área doadora na fossa escafoide da orelha foi suturada primariamente com mononáilon, deixando cicatriz praticamente imperceptível (Figura 3).

As pacientes foram orientadas a usar colírio lubrificante ocular várias vezes ao dia e pomada oftálmica à base de acetato de retinol e cloranfenicol durante a noite. Isso diminui o desconforto causado pelo atrito do pericôndrio com o globo ocular e a síndrome do olho vermelho, que ocorre nas primeiras semanas.

 

RESULTADOS

Durante a cirurgia de Mohs, a análise histológica evidenciou CBC com padrão histológico misto em três pacientes, com padrão nodular e infiltrante (Figura 1) na mesma lesão, uma com padrão exclusivamente nodular; duas pacientes não tiveram seus tumores visualizados durante a cirurgia porque obtivemos margens cirúrgicas livres logo na primeira fase. Obtiveram-se margens cirúrgicas livres de neoplasia após duas fases de ampliação em três pacientes, e foram necessárias três fases em uma paciente.

Todas as pacientes evoluíram com total adaptação do enxerto condro-pericondrial com mínimo desconforto ocular nas primeiras semanas, e total transformação por metaplasia do tecido pericondral em contato com o globo ocular, em conjuntiva, após oito semanas (Figura 1).

Houve pequena retração da pálpebra inferior em todos os casos, ocasionando discreto escleroshow, esteticamente aceitável e sem nenhum grau de ectrópio (Figura 2).

Nenhuma das pacientes apresentou recidiva até o momento, sendo o tempo de acompanhamento pós-operatório de seis a 32 meses.

 

DISCUSSÃO

A CMM confirmou sua importância como padrão ouro no tratamento de tumores palpebrais por permitir controle histológico preciso das margens cirúrgicas.

Existem várias técnicas descritas para a reconstrução da lamela posterior. Os enxertos exclusivamente de mucosa, como no caso dos enxertos de palato duro, não fornecem estabilidade mecânica suficiente na ocorrência de grandes defeitos de lamela posterior.4,5 Os enxertos compostos de cartilagem/mucosa de septo nasal são classicamente descritos na literatura com bons resultados; são, entretanto, tecnicamente difíceis de ser colhidos da área doadora.4,5 Os enxertos condro-pericondrais de concha da orelha tambem são descritos com bons resultados; entretanto, devido a sua maior espessura, a cartilagem conchal é menos maleável, dificultando a perfeita adaptação ao globo ocular. Portanto, acreditamos que os enxertos condro-pericondrais de cartilagem da hélice da orelha sejam boa opção, sobretudo pela fácil execução que oferecem e por sua adaptação ao globo ocular.

A técnica aqui descrita dispensa a necessidade de enxerto mucoso, uma vez que o pericôndrio que fica em contato direto com o globo ocular sofre metaplasia e se transforma em tecido similar ao da conjuntiva. Esses achados coincidem com publicações que demonstram a importância do pericôndrio no processo de epitelização e rapidez da transformação tecidual em conjuntiva, que é superior quando comparado aos enxertos exclusivamente de cartilagem, livres de pericôndrio.10,11

Além disso, o enxerto condro-pericondral de hélice da orelha substitui satisfatoriamente o tecido tarsal perdido, fornecendo suporte mecânico e permitindo a adequada mobilização e oclusão palpebral.4,11

 

CONCLUSÃO

Embora o presente estudo tenha amostra pequena de pacientes, a técnica descrita se mostrou excelente opção para as reconstruções palpebrais extensas, com perda da lamela posterior, por dar estabilidade e mobilidade adequada à pálpebra, com transformação completa do pericôndrio em tecido conjuntival em poucas semanas, tendo mínimo desconforto no pós-operatório, e com excelente resultado funcional e estético.

 

Referências

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2. Deprez M, Uffer S. Clinicopathological features of eyelid skin tumors. A retrospective study of 5504 cases and review of literature. Am J Dermatopathol. 2009;31(3):256-62.

3. Ahmad J, Mathes DW, Itani KM. Reconstruction of the eyelids after Mohs surgery. Semin Plast Surg. 2008;22(4):306-1

4. Parodi PC, Faini G, De Biasio F, Rampino Cordaro E, Guarneri GF, Miani F. Full-thickness lower eyelid reconstruction with a conchal chondro-perichondral graft and local coverage with Mio-cutaneous flaps--our divisional experience. J Oral Maxillofac Surg. 2008;66(9):1826-32.

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8. Moesen I, Paridaens D. A technique for the reconstruction of lower eyelid marginal defects. Br J Ophthalmol. 2007;91(12):1695-7.

9. Özkaya Ö, Karşidag S, Egemen O, Akçal AÖ, Şirvan S, Kabukçuoglu F. Comparative analysis of the nail xenografts with cartilage autografts in eyelid reconstruction. J Craniofac Surg. 2012;23(4):1028-31.

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Trabalho realizado no Centro de Cirurgia Micrográfica do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.


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