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Relato de casos

Retalho plantar medial inervado para reconstrução de defeito complexo de calcâneo pós-tratamento de melanoma acral

Felipe Amado Cerqueira Gomes; Roney Gonçalves Fechine Feitosa; Flávia Modelli Vianna Waisberg; An Wan Ching; Lydia Masako Ferreira

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20201243595

Data de recebimento: 12/05/2020
Data de aprovação: 04/03/2021
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum
Trabalho realizado na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil


Abstract

A reconstrução de defeitos da região distal dos membros inferiores é complexa e gera um desafio ao cirurgião restaurador. O uso de retalhos fasciocutâneos locais deve ser considerado para este fim. Nesse relato de casos, apresentamos duas pacientes submetidas à reconstrução de calcâneo com retalho plantar medial inervado após ressecção de melanoma acral. Este retalho proporciona um tecido com elevada resistência e durabilidade, mantendo a sensibilidade da região ao preservar o tronco nervoso. Em nossa prática, o retalho plantar medial tem se mostrado uma excelente opção para reconstrução de defeitos do pé, especialmente do calcâneo, promovendo boa adaptação e resultados duradouros.


Keywords: Cirurgia plástica; Extremidade inferior; Melanoma; Retalhos cirúrgicos


INTRODUÇÃO

A reconstrução de defeitos do terço distal dos membros inferiores utilizando retalhos locais é um verdadeiro desafio ao cirurgião plástico. A pele delgada da região vizinha, associada à pobreza de tecidos moles e à relativa imobilidade das estruturas, restringe as opções terapêuticas e dificulta bons resultados finais.

O uso do retalho plantar medial para o tratamento dessas lesões foi inicialmente proposto por Harrison e Morgan em 19811 e seu uso tornou-se muito popular com o avanço do conhecimento anatômico-vascular da região. Baseia-se em um retalho fasciocutâneo em ilha do arco plantar e proporciona um tecido bastante versátil para a cobertura de defeitos do pé, calcâneo e tornozelo.

Este retalho pediculado poupa o tronco neurovascular e preserva os ramos sensitivos cutâneos, transferindo um segmento de pele inervado para a área receptora.2 Com isso, proporciona preservação duradoura do retalho e contribui para a reabilitação do paciente. Ademais, por ser um retalho local, mantém as características da pele plantar com elevada resistência e durabilidade, capaz de suportar altas pressões e forças de cisalhamento.3

 

OBJETIVO

O objetivo do presente estudo é relatar dois casos de reconstrução de calcâneo, após a ressecção de melanoma acral utilizando o retalho fasciocutâneo plantar medial inervado, e sua revisão da literatura.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo clínico, primário, retrospectivo, em centro único. Utilizou-se o Clinical Case Reporting Guideline Development (CARE)4 para a elaboração de uma série de dois casos conduzidos pelo Setor de Microcirurgia da Disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respeitando-se todos os preceitos éticos e direitos, dentre outros assegurados.

Caso 1

Mulher de 60 anos com queixa de lesão irregular e dolorosa em região de calcâneo direito com crescimento progressivo há três anos. Referia dificuldade de acesso ao sistema de saúde especializado, levando ao atraso no diagnóstico. Ao exame físico, apresentava tumoração melanocítica irregular e ulcerada em região calcânea direita com componente de crescimento nodular. A lesão apresentava aproximadamente 8cm de extensão, mostrava-se dolorosa e aderida a planos profundos. Pulsos pedioso e tibial posterior presentes à palpação. Ausência de linfonodomegalias em região poplítea e inguinal (Figura 1).

Seguindo a investigação, foi realizada biópsia incisional da tumoração evidenciando melanoma acral com Breslow de 3,4mm, ulceração e oito mitoses/campo. A doença foi classificada como localmente avançada com plano de clivagem óssea do calcâneo, optando-se por ressecção com 2cm de margens e pesquisa de linfonodo sentinela. O resultado do anatomopatológico foi compatível com melanoma acral com margens livres e linfonodo sentinela negativo (T3bN0M0 Clark V). A reconstrução imediata foi realizada pela equipe de tumores cutâneos por meio de sutura elástica e curativos biológicos (Figura 2).

Após dois anos de acompanhamento, paciente não apresentou evolução da doença e foi encaminhada ao Setor de Microcirurgia da Cirurgia Plástica da Unifesp para reconstrução tardia. O defeito estendia-se por 9,3 x 8,6cm, optando-se pela reconstrução com uso de retalho plantar medial inervado, conforme apresentado nas imagens. Paciente encontra-se atualmente no 6º mês de pós-operatório com boa evolução, deambulação sem dificuldade e sem recidiva tumoral (Figura 3).

Caso 2

Mulher de 32 anos veio encaminhada de serviço externo com diagnóstico de melanoma acral em calcâneo esquerdo. Já havia sido submetida à biópsia excisional, com resultado anatomopatológico evidenciando Breslow de 0,7mm, sem mitose ou ulceração (T1aN0M0 Clark II). Ao exame físico, cicatriz em região calcânea em bom aspecto, pulsos pedioso e tibial posterior presentes e ausência de linfonodomegalias em região poplítea e inguinal.

Decidido pela equipe por ampliação de margens cirúrgicas com 1cm, resultando em área cruenta com 3,5cm de diâmetro. Optou-se por reconstrução com retalho fasciocutâneo plantar medial, conforme ilustrado nas figuras 4 e 5.

 

DISCUSSÃO

Ao lidar com lesões complexas ou defeitos extensos na região distal dos membros inferiores, o uso de retalhos fasciocutâneos deve ser considerado. Dentre as opções possíveis, o retalho plantar medial tem lugar de destaque em área cuja função seja suportar peso, fricção e altas forças de cisalhamento.5 Este retalho proporciona uma cobertura altamente resistente com epiderme espessa, tecido subcutâneo especializado e fáscia com boa adesão a tecidos profundos.

Ramo da artéria tibial posterior, a artéria plantar medial é responsável por manter a irrigação deste retalho.6 Ao emitir ramos superficiais e profundos, irriga a musculatura do hálux e da pele da região plantar. O bom fluxo sanguíneo desta artéria é evidenciado pela possibilidade de transferência deste retalho para diversos locais circunvizinhos e pela viabilidade ao ser transferido para áreas previamente infectadas. Um adequado suprimento sanguíneo favorece bons resultados precoces e tardios (Figura 6).

Outra importante característica para o sucesso do retalho plantar medial é a preservação nervosa. A dissecção do nervo plantar medial e seus ramos possibilita a manutenção da sensibilidade deste segmento de pele, sem prejudicar a inervação do restante do antepé. Os ramos sensitivos cutâneos irão manter a percepção de estímulos, como pressão, dor e sensibilidade térmica, contribuindo para a proteção e preservação do retalho.7 Em pacientes com algum grau de neuropatia periférica, tal propriedade é de essencial importância.

A característica ímpar da pele da região plantar nesta equação deve ser ressaltada. A pele plantar é altamente especializada para o suporte do peso do corpo, contando com uma epiderme espessa, ricamente queratinizada e com uma camada adicional de proteção chamada camada lúcida. Soma-se ainda a sustentação de um tecido subcutâneo bastante diferenciado e resistente, permeado com septos fibrosos. Por ser proveniente de região vizinha, o retalho plantar medial mantém a propriedade like with like, substituindo a pele da região plantar por outra pele com as mesmas características (Figura 7).

Para reconstruções de defeitos distais nos membros inferiores, o cirurgião pode optar por retalhos alternativos. O uso de retalhos surais reversos, retalhos do tipo propeller (axial de fluxo reverso) ou mesmo retalhos microcirúrgicos é boa alternativa e deve ser considerado no planejamento cirúrgico.8 Porém, por não possuir as características like with like, não costuma ser a primeira opção para reconstruções da região plantar (Figura 8).

Vale ressaltar que, apesar de não haver transferência da camada muscular, o retalho fasciocutâneo plantar medial promove um coxim com espessura e durabilidade adequadas. A fáscia transferida adere-se bem a proeminências ósseas e estruturas profundas da área receptora, promovendo uma resistente ancoragem e dificultando o cisalhamento.9 Além disso, a contração secundária promove um “efeito cogumelo”, que contribui para o espessamento do retalho, tornando sua espessura mais semelhante ao tecido original.

Este tipo de retalho tem valor adicional em pacientes com neuropatia diabética e ulcerações distais.10, 11 As úlceras nesses pacientes são lesões de difícil tratamento e muitas vezes são defeitos profundos, com exposição de camada muscular e óssea. Frequentemente, tais pacientes já foram submetidos a tratamentos conservadores com pouca ou nenhuma melhora. Apesar de retalhos simples de rotação ou avanço trazerem bons resultados em defeitos menores, para ulcerações complexas normalmente não são suficientes. Nesses casos, os retalhos fasciocutâneos apresentam resultados melhores.

 

CONCLUSÃO

O retalho plantar medial é uma ótima opção nas reconstruções de defeitos do calcâneo por sua versatilidade12, resistência e reprodutibilidade na execução, com anatomia relativamente constante. Possibilita um retalho inervado sem necessidade de enxertia nervosa e substitui um tecido altamente especializado por outro com características semelhantes. Assim, em consonância com a literatura13, a nossa experiência com tais retalhos aponta para resultados animadores a curto e longo prazo e deve ser considerada como opção para esse tipo de tratamento.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Felipe Amado Cerqueira Gomes | 0000-0003-3915-582X
Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Roney Gonçalves Fechine Feitosa | 0000-0001-6000-743X
Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Flávia Modelli Vianna Waisberg | 0000-0002-8336-5026
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

An Wan Ching | 0000-0002-9205-9899
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

Lydia Masako Ferreira | 0000-0001-6661-1830
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.

 

REFERÊNCIAS

1. Website n.d. Harrison DH, Morgan BD. The instep island flap to resurface plantar defects. Br J Plast Surg. 1981;34(3):315-8. PMID: 7272570 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/0007-1226(81)90019-9 (accessed May 3, 2020).

2. Khan FH, Beg MSA, Obaid-Ur-Rahman. Medial Plantar Artery Perforator Flap: Experience with Soft-tissue Coverage of Heel. Plast Reconstr Surg Glob Open 2018;6:e1991.

3. Zelken JA, Lin C-H. An Algorithm for Forefoot Reconstruction With the Innervated Free Medial Plantar Flap. Ann Plast Surg 2016;76:221-6.

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6. Blanton C, Kercado M, Nordquist T, Masadeh S, Rodriguez P, Rodriguez-Collazo E. Medial Plantar Artery Common Origin to Determine Incision Placement for the Fasciocutaneous Flap: A Cadaveric Study. J Foot Ankle Surg 2020;59:462-4.

7. Trevatt AEJ, Filobbos G, Ul Haq A, Khan U. Long-term sensation in the medial plantar flap: a two-centre study. Foot Ankle Surg 2014;20:166-9.

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13. Park JS, Lee JH, Lee JS, Baek JH. Medialis pedis flap for reconstruction of weight bearing heel. Microsurgery 2017;37:780-5.


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