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Relato de casos

Queratoacantoma gigante em paciente com síndrome da imunodeficiência adquirida tratado com cirurgia micrográfica de Mohs

Paula Hitomi Sakiyama; Thiago Augusto Ferrari; Raíssa Rigo Garbin; Alexandre Luiz Weber

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20201243590

Data de recebimento: 10/05/2020
Data de aprovação: 04/03/2021
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum
Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia do Hospital Santa Casa de Curitiba, Curitiba (PR), Brasil


Abstract

O queratoacantoma (QA), apesar de frequente na prática diária, é um tumor que gera questionamentos. O aspecto mais intrigante associa-se à sua posição no limite entre malignidade e benignidade. A abordagem do tumor, bem como sua classificação, é controversa. Na definição da conduta, é importante levar em conta o potencial de transformação para carcinoma espinocelular. Desse modo, a excisão cirúrgica é a terapia de escolha, sempre que possível. Algumas situações merecem atenção adicional, como a imunossupressão associada. Neste artigo, relatamos um caso de QA gigante em um paciente com síndrome da imunodeficiência adquirida tratado com cirurgia micrográfica de Mohs.


Keywords: Ceratoacantoma; Retalhos Cirúrgicos; Neoplasias Nasais; Neoplasias Cutâneas; Cirurgia de Mohs; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; HIV; Imunossupressão


INTRODUÇÃO

O queratoacantoma (QA), apesar de frequente, é um tumor que provoca questionamentos. Embora descrito em 1888 por Sir Jonathan Hutchinson, sua etiologia, epidemiologia, seus critérios histopatológicos diagnósticos, seu prognóstico e suas diretrizes de tratamento permanecem controversos ainda hoje. O aspecto mais intrigante relaciona-se à sua posição no limite entre benignidade e malignidade, o que deve ser levado em conta na definição da conduta.¹

Diversas apresentações clínicas são descritas, sendo o QA solitário a manifestação mais habitual. O QA gigante representa uma variante incomum, caracterizada por lesão maior que 2cm de diâmetro, com predileção pela face, acometendo especialmente nariz e pálpebras.2

Neste artigo, relatamos um caso de QA gigante em paciente imunossuprimido devido à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), tratado com cirurgia micrográfica de Mohs (CMM).

 

RELATO DO CASO

Paciente masculino, 47 anos, apresentando QA em região nasal, recidivado após exérese por cirurgia convencional com margens de 4mm, dois meses antes. Diagnóstico recente de HIV, em uso regular de terapia antirretroviral e carga viral (CV) indetectável, porém ainda com níveis de linfócitos T-CD4+ baixos (138 células/mm3), caracterizando imunossupressão. Ao exame, apresentava nódulo endurecido de superfície lisa, bordas regulares e hiperceratose central, acometendo dorso e parede nasal, medindo 4,4 x 3,8cm e ausência de linfonodomegalias palpáveis (Figura 1). A investigação adicional com tomografia axial computadorizada e ressonância nuclear magnética revelou acometimento restrito a partes moles. Novo exame anatomopatológico foi compatível com carcinoma espinocelular (CEC) invasor tipo QA. Por se tratar de um tumor recidivado, extenso e em localização de alto risco, foi indicada abordagem por CMM. Foi realizado procedimento cirúrgico com obtenção de margens livres no terceiro estágio e reconstrução do defeito cirúrgico por retalho interpolado do tipo paramediano frontal (Figura 2). Devido à íntima relação da margem profunda com o osso nasal, identificada no intraoperatório, optou-se por radioterapia adjuvante. O paciente segue em acompanhamento, com boa evolução e sem sinais de recidiva (Figura 3).

 

DISCUSSÃO

A relação entre QA e CEC é amplamente discutida. Enquanto alguns autores consideram o QA como uma proliferação escamosa de base folicular distinta e que geralmente segue um curso clínico benigno, outros afirmam ser uma variante clínica de CEC propensa à regressão espontânea, mas com ocasional comportamento agressivo e até metastatização. A dissolução da problemática é dificultada pela falta de critérios anatomopatológicos que diferenciem definitivamente as duas entidades. Relatos de transformação de QA em CEC também insinuam a possibilidade de tratar-se de estágios diferentes de uma mesma entidade, e não duas.3,4,5,6,7 Por isso, alguns especialistas preferem empregar termos mais amplos nos laudos histopatológicos, como “QA tipo CEC”, “provável QA” ou “CEC não pode ser descartado”, para definir o tumor.1

A abordagem do QA solitário é controversa, mas é importante ter em mente o seu potencial de transformação para CEC invasor e metástases na definição do tratamento. A conduta expectante é questionável, a menos que sinais claros de resolução estejam presentes, e pode cursar com dano considerável em lesões maiores por destruição de estruturas subjacentes ou cicatriz inestética resultante da involução.1,2 Outras opções terapêuticas incluem curetagem e eletrodissecção, aplicação intralesional de agentes quimioterápicos, radioterapia e agentes tópicos, porém apresentam como desvantagem o fato de não permitirem a confirmação histopatológica da completa remoção do tumor. Desse modo, a excisão cirúrgica é a terapia de primeira linha, sempre que possível. Não há uma determinação específica sobre as margens na cirurgia convencional, sendo consideradas as mesmas recomendadas para o CEC não invasivo (4-6mm).1A radioterapia adjuvante constitui uma opção em situações selecionadas, como em casos de maior agressividade clínica ou ainda no QA gigante, como o caso apresentado.2,8

A CMM mostra a menor taxa de recidiva dentre todas as modalidades.8 O procedimento permite a avaliação intraoperatória de 100% das margens teciduais, diferente da abordagem cirúrgica convencional, na qual apenas seções representativas do tumor são examinadas, limitando-se a menos de 0,01 a 1% da totalidade da margem excisada. Quando disponível, é o método de escolha nas lesões extensas (maiores de 2cm) ou nas que acometem áreas críticas, em que a preservação de tecido é desejada pela vantagem de poder minimizar o tamanho do defeito cirúrgico antes do fechamento da ferida. Além disso, a CMM também é indicada em imunossuprimidos em função da maior frequência e agressividade dos carcinomas queratinocíticos nesse grupo.10,11,12

O risco aumentado de CEC em imunossuprimidos já é bem estabelecido. No que diz respeito especificamente ao HIV, estudos apontam que pessoas infectadas apresentam taxas mais altas de recorrência de CEC, mesmo entre indivíduos mais jovens com HIV bem controlado, sugerindo que a doença por si só possa representar um fator adicional à imunossupressão.13,14 Por outro lado, quanto ao desenvolvimento de CECs subsequentes, foi observado que há uma relação entre risco aumentado de novos tumores e menor número de CD4 e CV alta, aventando que, nesse contexto, haja associação com biomarcadores de imunodeficiência.14 Portanto, em razão da relação entre o QA e o CEC, pacientes com HIV requerem atenção especial na determinação da terapia ideal, sendo a CMM uma excelente opção. O caso retratado corrobora a maior agressividade nesse grupo, uma vez que ocorreu recidiva do tumor após exérese pela técnica convencional, considerada um método de primeira linha na abordagem do QA.

Os pacientes com QA devem ser monitorados após o tratamento pela possibilidade de recidiva ou, pelo fenômeno de Koebner, de desenvolvimento de uma nova lesão no local previamente abordado, geralmente entre uma semana a oito meses posteriores à intervenção. Orientações para evitarem-se possíveis fatores desencadeantes, como exposição prolongada e intensa à luz ultravioleta e procedimentos médicos ou cosméticos em área de pele fotodanificada, também são importantes.¹ Vale ressaltar que portadores de HIV demandam atenção adicional durante o seguimento, considerando-se a influência da doença no risco de CEC.13,14

 

CONCLUSÃO

O QA gigante é um tumor de rápida evolução, que pode atingir grandes dimensões e causar destruição local, além da possibilidade de malignização. A CMM representa uma boa opção de tratamento nesses casos, sobretudo na presença de fatores de risco adicionais, como imunossupressão, tendo em vista a possibilidade de avaliação completa das margens e altas taxas de cura, além dos benefícios estético e funcional consequentes à preservação de tecido sadio.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Paula Hitomi Sakiyama | 0000-0001-7813-8294
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Thiago Augusto Ferrari | 0000-0003-4874-4837
Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Raíssa Rigo Garbin | 0000-0002-9771-1209
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Alexandre Luiz Weber | 0000-0002-4862-5777
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

 

REFERÊNCIAS

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