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Relato de caso

Miíase por Dermatobia hominis simulando lipoma

Ana Beatriz Antunes Funes; Ana Carolina Gama Martins; André Matheus Camelo Neves; Marilda Aparecida Milanez Morgado de Abreu; Ana Cláudia Cavalcante Espósito

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20201232548

Data de recebimento: 12/03/2020
Data de aprovação: 18/08/2020

Suporte Financeiro: Nenhum.
Conflito de Interesses: Nenhum.

Trabalho realizado na Universidade do Oeste Paulista, Presidente Prudente (SP), Brasil.


Abstract

INTRODUÇÃO: Dermatobia hominis é um dos principais agentes etiológicos da miíase furunculoide. É mais comum em países intertropicais e induz a formação na pele de pápula ou nódulo com orifício central. Quando o diagnóstico da lesão não é realizado ou quando a larva não é estruída, pode evoluir para a formação de uma tumoração. Relatamos um caso raro de lesão simuladora de lipoma no membro inferior de um homem morador da zona rural. O diagnóstico etiológico foi realizado por meio do exame histopatológico, sendo possível visualizar um cisto com material exógeno ao centro, compatível com D. hominis, em nítido processo de degradação.


Keywords: Larva; Lipoma; Miíase


INTRODUÇÃO

Dermatobia hominis, da família Cuterebridae, é o agente etiológico mais comum da miíase cutânea furunculoide.1 Seu ciclo de vida tem uma característica especial, chamada forésia, em que a fêmea coloca seus ovos no abdome de um inseto hematófago, estabelecendo uma relação harmônica interespecífica.2 Mais de 50 espécies podem carrear os ovos, destacando-se a Sarcopromusca pruna, Musca domestica e Haematobia irritans.3

Quando o inseto pica um indivíduo, os ovos entram em contato com o calor da pele humana, eclodem e, então, a larva penetra na pele, ainda que esta esteja íntegra.1 A larva se mantém no interior da pápula ou nódulo formado por cinco a dez semanas, período em que passa pelos primeiro, segundo e terceiro estágios larvais. No ciclo completo, a larva madura emerge à superfície da pele durante a noite, cai no solo e forma a pupa. Um mês após abandonar o hospedeiro, eclode o inseto adulto, que irá promover a manutenção do ciclo.1

Quando a larva é posta na pele humana, muitas vezes é feita a extração antes que o ciclo se complete. Entretanto, em casos mais raros, a larva encista no tecido subcutâneo e pode evoluir para a formação de nódulos. No presente artigo, relatamos o caso de um paciente com tumoração subcutânea no membro inferior, de longa evolução, cujas características clínicas simulavam um lipoma. Entretanto, a ultrassonografia foi compatível com corpo estranho e, após a exérese da lesão, o exame histopatológico permitiu a visualização da larva.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Homem, 56 anos, agricultor e residente da zona rural, procurou auxílio médico devido ao surgimento, há dois anos, de lesão assintomática na face medial da perna esquerda. Negava trauma precedendo o desenvolvimento.

Ao exame físico, apresentava uma tumoração subcutânea de 4cm de diâmetro, com consistência amolecida, não aderida aos planos profundos, indolor à palpação e sem orifício central. A pele sobreposta à lesão não apresentava sinais flogísticos (Figura 1). A hipótese clínica foi de lipoma, mas, como o paciente apresentava veias varicosas nos membros inferiores, foi solicitada ultrassonografia com Doppler Color para planejamento cirúrgico. O exame de imagem evidenciou imagem fusiforme hipoecogênica capsulada localizada no subcutâneo e, ao centro, havia uma imagem hiperecogênica de 17x6mm, que poderia ser compatível com um corpo estranho.

Foi, então, realizada a exérese completa da lesão, conforme demarcação prévia (Figura 2). Ao exame histopatológico do material, observou-se macroscopicamente uma formação nodular medindo 1,8cm. À coloração de Hematoxilina & eosina, foi possível visualizar uma lesão cística com cavidade única, totalmente preenchida por conteúdo líquido amarelado. Havia intenso processo inflamatório crônico, com reação gigantocelular do tipo corpo estranho e tecido de granulação com neoformação vascular e degradação do colágeno. Ao centro, havia um material exógeno compatível com D. hominis em nítido processo de degradação (Figuras 3 e 4).

Paciente evoluiu com adequada cicatrização da ferida operatória (Figura 5) e está em seguimento dermatológico de rotina há dois anos.

 

DISCUSSÃO

Os principais agentes da miíase cutânea furunculoide são Dermatobia hominis, Cordylobia anthropophaga, Cuterebra sp e Wohlfahrtia sp.4,5 É mais comum em países em desenvolvimento (intertropicais), como os da América Central, América do Sul e África subsaariana.6 Os casos incidentes em indivíduos provenientes de outras áreas do globo decorrem, em geral, de viajantes que estiveram em área endêmica, imputando grande desafio diagnóstico ao retornarem ao país de origem.7,8

Dermatobia hominis tem fileiras de espinhos escuros voltados para trás, um par de ganchos na boca, músculos estriados, além de uma cutícula externa que envolve órgãos internos.9 A infestação pela larva tem relação com maus hábitos de higiene, convívio em ambiente rural (como no caso relatado) e baixo status socioeconômico.8

A presença do D. hominis na pele induz a formação de uma pápula ou um nódulo, com orifício central de aproximadamente 1mm (correspondendo ao poro respiratório do invertebrado e pode ser visualizado pela dermatoscopia), do qual sai uma secreção serossanguinolenta ou purulenta.7,8

Em geral, a extração manual da larva não representa um desafio e é facilitada pela oclusão do orifício com substâncias petrolizadas.5 Entretanto, quando o diagnóstico da lesão não é realizado corretamente ou quando a larva não é estruída (espontaneamente ou sob manipulação), pode evoluir para a formação de uma tumoração que simula um cisto epidérmico, lipoma (como o caso apresentado) ou mesmo neoplasias malignas de partes moles.10,11 Nestes casos, a única conduta efetiva é a exérese cirúrgica. A confirmação etiológica passa a ser baseada no exame histopatológico, que evidencia uma cavidade contendo a larva, em geral sob destruição enzimática, circundada por linfócitos e eosinófilos. O colágeno dérmico apresenta-se degradado e é comum a visualização de reação tipo corpo estranho.9

 

CONCLUSÃO

Relatamos o caso de um paciente com miíase cutânea furunculoide, no qual a larva não foi expelida e que evoluiu para a formação de lesão cística de grande dimensão, simulando um lipoma, que persistiu por dois anos, um período de tempo muito além do habitual. Em países endêmicos, especialmente em moradores da área rural ou sob condições de higiene restritas, a possibilidade de infestação por larva deve ser aventada.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Ana Beatriz Antunes Funes | 0000-0002-1224-8535
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Ana Carolina Gama Martins | 0000-0002-8507-0774
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

André Matheus Camelo Neves | 0000-0001-8602-5724
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Marilda Aparecida Milanez Morgado de Abreu | 0000-0001-9099-6013
Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Ana Cláudia Cavalcante Espósito | 0000-0001-9283-2354
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

 

REFERÊNCIAS

1. Villalobos G, Vega-Memije ME, Maravilla P, Martinez-Hernandez F. Myiasis caused by Dermatobia hominis: countries with increased risk for travelers going to neotropic areas. Int J Dermatol. 2016;55(10):1060-8.

2. Safdar N, Young DK, Andes D. Autochthonous furuncular myiasis in the United States: case report and literature review. Clin Infect Dis. 2003;36(7):e73-80.

3. Azevedo RR, Duarte JLP, Ribeiro PB, Krüger RF. Occurrence of Sarcopromusca pruna (Diptera) in Southern Brazil as a vector of Dermatobia hominis (Diptera) eggs. Arq Bras Med Vet Zootec. 2007;59(5):1348-50.

4. Ko JY, Lee I-Y, Park BJ, Shin JM, Ryu J-S. A case of cutaneous myiasis caused by Cordylobia anthropophaga larvae in a Korean traveler returning from Central Africa. Korean J Parasitol. 2018;56(2):199-203.

5. Suárez JA, Ying A, Orillac LA, Cedeño I, Sosa N. First case of furuncular myiasis due to Cordylobia anthropophaga in a Latin American resident returning from Central African Republic. Braz J Infect Dis. 2018;22(1):70-3.

6. Rodriguez-Cerdeira C, Gregorio MC, Guzman RA. Dermatobia Hominis infestation misdiagnosed as abscesses in a traveler to Spain. Acta dermatovenereol Croat. 2018;26(3):267-9.

7. Olsen J, Nejsum P, Jemec GBE. Dermatobia hominis misdiagnosed as abscesses in a traveler returning from Brazil to Denmark. Acta Dermatovenerol Alp Pannonica Adriat. 2017;26(2):43-4.

8. Dunphy L, Sood V. Dermatobia hominis "the human botfly" presenting as a scalp lesion. BMJ Case Rep. 2019;12(3).

9. Harbin LJ, Khan M, Thompson EM, Goldin RD. A sebaceous cyst with a difference: Dermatobia hominis. J Clin Pathol. 2002;55(10):798-9.

10. Schembre DB, Spillert CR, Khan MY, Lazaro EJ. Dermatobia hominis myiasis masquerading as an infected sebaceous cyst. Can J Surg. 1990;33(2):145-6.

11. Kahn DG. Myiasis secondary to Sermatobia hominis (human botfly) presenting as a long-standing breast mass. Arch Pathol Lab Med. 1999;123(9):829-31.


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