3513
Views
Open Access Peer-Reviewed
Relato de caso

Preenchimento com ácido hialurônico e blefaroplastia transcutânea em esclerodermia sistêmica estável

Natacha Quezada Gaón1; Teresa De La Cerda1; Cristian Vera-Kellet1,2

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20201212523

Data de recebimento: 01/02/2020
Data de aprovação: 28/02/2020

Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de interesse: Nenhum

Trabalho realizado no Departamento de Cosmiatria, Serviço de Dermatologia, Faculdade de Medicina, Pontifícia Universidade Católica de Chile, Chile


Abstract

A esclerose sistêmica é uma doença de causa desconhecida, que se caracteriza pelo espessamento da pele. Trata-se de uma patologia rara que, quando não é tratada a tempo, produz um dano grave na estética facial causando um grande impacto na qualidade de vida. Relatamos o caso de paciente feminina, 54 anos, com esclerose sistêmica há 25 anos, referindo estabilidade da doença há mais de quatro anos. A paciente se apresentou à consulta com queixa de deformidade facial. Foi submetida a procedimentos minimamente invasivos e de baixo risco - blefaroplastia transcutânea e preenchimento com ácido hialurônico - obtendo resultados esteticamente adequados.


Keywords: Blefaroplastia; Ácido hialurônico; Esclerodermia difusa


INTRODUÇÃO

A esclerose sistêmica (ES) é uma doença do tecido conjuntivo que se caracteriza por um depósito excessivo de colágeno e outras substâncias da matriz extracelular, produzindo esclerose cutânea e danos na microvasculatura da pele e dos órgãos internos.1-4 Afeta predominantemente as mulheres, com uma relação mulher:homem de 4:1.5 Os sintomas mais comuns incluem o fenômeno de Raynaud, poliartralgia, disfagia, pirose, edema e espessamento da pele e contraturas dos dedos.5

Existem três fases de envolvimento dérmico: inicialmente, há uma fase edematosa, que muitas vezes apresenta mãos e dedos rígidos e inchados; a segunda fase, denominada indurativa, caracteriza-se por espessamento e endurecimento da pele (esclerodactilia e a clássica face inexpressiva); e, finalmente, há uma fase atrófica.5,6

A ES é classificada como limitada (ESL), difusa (ESD) e sem esclerodermia (ESS). Nos casos de ESL (síndrome de CREST: calcinose cutânea, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia, telangiectasias), os doentes desenvolvem tensão da pele na face e na porção distal dos cotovelos e joelhos. Podem também apresentar doença de refluxo gastroesofágico.6,7 Na ESD, há grande envolvimento difuso da pele, os pacientes apresentam fenômeno de Raynaud e complicações gastrointestinais. Este tipo tende a evoluir rapidamente. A doença pulmonar intersticial e a crise de esclerodermia renal são as principais complicações.8-10 Na ESS, os doentes têm anticorpos relacionados à ES e manifestações viscerais da doença, mas não apresentam envolvimento cutâneo.9

Sua incidência é <10 por 1 milhão por ano e sua prevalência <150 por 1 milhão no norte da Europa e no Japão. Nos Estados Unidos, Canadá, sul da Europa e Austrália apresenta incidência de >10 por 1 milhão por ano e estimativas de prevalência >150 por 1 milhão.11

O termo esclerodermia foi introduzido por Gintrac em 1847, e surgiu da importância da participação da pele na doença vascular e nas alterações fibróticas.12 Atualmente, o termo esclerodermia refere-se ao envolvimento cutâneo dos doentes. Todo paciente com morfeia tem esclerodermia (fibrose cutânea), mas nem todo paciente com ES tem esclerodermia, razão pela qual não se deve utilizar o termo esclerodermia como sinônimo de esclerose sistêmica.5

A fisiopatologia exata da esclerodermia é desconhecida. Considera-se que é secundária a uma reação autoimune que provoca uma superprodução localizada de colágeno. Em alguns casos, tem sido associada à exposição a produtos químicos. Foram envolvidos fatores genéticos e infecciosos como possíveis agentes causais.5

O comprometimento facial da esclerose sistêmica e das morfeias está associado a complicações orais, e as alterações estéticas afetam intensamente a autoimagem do paciente e sua qualidade de vida.13-15

 

RELATO DO CASO

Apresentamos o caso de paciente feminina de 54 anos com antecedentes de hipotireoidismo, controlado com levotiroxina 50mg, depressão grave em tratamento com escitalopram 10mg e diagnóstico de ES com 25 anos de evolução, em tratamento com tacrolimus 1,5mg a cada 12 horas, sirulimus 1,5mg por dia, e metilprednisolona 4mg por dia.

Ao exame físico, apresentava pele atrófica, pouco endurecida, sem discromias, e também atrofia grave das gorduras malar e zigomática e da zona da bochecha. Observava-se também, secundária a esta perda de volume facial, uma grande herniação dos compartimentos gordurosos palpebrais inferiores, e microstomia, redundando no aspecto clássico de face em máscara neste tipo de doentes (Figura 1).

Procedimento: Realizou-se anestesia local sem vasoconstritor, seguindo-se uma incisão transcutânea de 0,5cm na zona de maior extrusão da gordura palpebral inferior. Um centímetro abaixo do bordo palpebral, procedeu-se à remoção de parte das bolsas gordurosas exuberantes, controle do sangramento quase não existente e sutura com monocryl 6-0 com um único ponto que foi retirado após sete dias. A decisão por esta abordagem através da pele foi consequência da exuberância das bolsas, tendo sido a técnica mais fácil e menos complicada, sem risco de ectrópio (Figura 2).16,17

Uma semana depois, foi feito o preenchimento com ácido hialurônico (AH) de G prime alto ou de alta densidade (Voluma, Allergan, Guarulhos, Brasil) aplicado com cânula 21g em injeção retrógrada linear em leque no plano supraperiostal nas zonas malar, zigomática e na gordura de Bichat, totalizando 4ml de AH por bochecha (Figura 3).19-23

Em seguida, aplicamos 1ml de AH de baixa densidade (Volbella, Allergan, Guarulhos, Brasil) com agulha 30G, retroinjeção linear nas rugas peribucais e contorno labial, e, finalmente, 1ml de AH de média densidade (Voliftt, Allergan, Guarulhos, Brasil), aplicado com agulha em pequenos pontos no vermelhão dos lábios para melhorar a turgescência.24,25

Obteve-se um resultado esteticamente muito adequado, melhorando enormemente a qualidade de vida desta doente (Figuras 4 e 5).

 

DISCUSSÃO

Estudos recentes citam que as injeções de AH, um glicosaminoglicano aniônico não sulfatado amplamente distribuído em todos os tecidos conjuntivos, epitelial e neural, seriam um possível tratamento da fibrose cutânea.18,19 Acredita-se que o ácido hialurônico seria uma terapia válida em pacientes com esclerodermia devido às suas propriedades de preenchedor, por sua capacidade de reter água, suavizando e hidratando a pele.20,21 Além disso, foi demonstrado que o AH induz a produção de colágeno tipo I na derme, o que poderia explicar seu efeito duradouro.22

Recentemente, o grupo liderado por Guggino incluiu dez pacientes do sexo feminino entre 18 e 70 anos, com esclerose sistêmica. Cada doente foi tratado com três injeções de AH e plasma rico em plaquetas num intervalo de 15 a 20 dias. Todos os doentes foram avaliados mensalmente, aos três e 24 meses após o final do tratamento, em relação à abertura da boca, à liberdade de movimento dos lábios e à elasticidade da pele. O grupo observou que oito pacientes (80%) mostraram uma maior abertura da boca e um aumento da espessura do lábio superior desde o primeiro mês do seguimento, mantendo estes resultados após dois anos do controle inicial.

Outro potencial preenchimento poderia ser a gordura autóloga. A lipotransferência de gordura autóloga para o preenchimento de tecidos moles foi descrita como uma técnica cirúrgica plástica e estética bem estabelecida.14 Foram notificados doentes com esclerodermia estável que foram submetidos a injeções de gordura autóloga.13 Acredita-se que o enxerto de gordura possa ter propriedades regenerativas de tecido e não apenas servir como preenchedor, postulando-se que na gordura poderia haver células estaminais, fibroblastos e células endoteliais que diminuiriam a fibrose.13,14

Não existe consenso na literatura na aplicação de preenchedores e cirurgia minimamente invasiva em pacientes com esclerose sistêmica, por isso sugerimos e consideramos que a estabilidade do quadro sistêmico por mais de dois anos (estabilidade clínica e laboratorial) deve ser suficiente para permitir a utilização de AH ou de gordura autóloga nestes doentes. Note-se que antes de usar qualquer preenchedor, deve-se confirmar a estabilidade da doença e verificar todos os medicamentos em uso pelo doente (imunossupressores, anticoagulantes etc.) e atualizar os exames laboratoriais - hemograma completo, contagem de plaquetas, hepatite C, B, VIH e TB quantiferon).16

 

CONCLUSÕES

As complicações cosméticas cutâneas da ES podem ser melhoradas com sucesso com procedimentos minimamente invasivos, como a blefaroplastia transcutânea e o preenchimento facial com AH. O resultado estético adequado dependerá da experiência, técnica e destreza dos profissionais dermatologistas e/ou cirurgiões plásticos.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Natacha Quezada Gaón | ORCID 0000-0003-2322-3402
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Teresa De La Cerda | ORCID 0000-0002-18225-0097
Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.

Cristian Vera-Kellet | ORCID 0000-0001-8697-9245
Elaboração e redação do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

 

REFERÊNCIAS

1. Goldblatt F, O'Neill SG. Clinical aspects of autoimmune rheumatic diseases. Lancet. 2013;382(9894):797-808.

2. Sontheimer RD. Skin manifestations of systemic autoimmune connective tissue disease: diagnostics and therapeutics. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18(3):429-62.

3. Knobler R, Moinzadeh P, Hunzelmann N, Kreuter A, Cozzio A, Mouthon L, et al. European Dermatology Forum S1-guideline on the diagnosis and treatment of sclerosing diseases of the skin, Part 1: localized scleroderma, systemic sclerosis and overlap syndromes. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2017;31(9):1401-24.

4. Masi AT. Preliminary criteria for the classification of systemic sclerosis (scleroderma). Arthritis Rheum [Internet]. 1980;23(5):581-90.

5. Furue M, Mitoma C, Mitoma H, Tsuji G, Chiba T, Nakahara T, et al. Pathogenesis of systemic sclerosis - current concept and emerging treatments. Immunol Res. 2017;65(4):790-797.

6. Sobolewski P, Maślińska M, Wieczorek M, Łagun Z, Malewska A, Roszkiewicz M, et al. Systemic sclerosis - Multidisciplinary disease: Clinical features and treatment. Reumatologia. 2019;57(4):221-33.

7. Orlandi M, Barsotti S, Lepri G, Codullo V, Di Battista M, Guiducci S, et al. One year in review 2018: Systemic sclerosis. Clin Exp Rheumatol. 2018;36 Suppl 113(4):S3-23.

8. Denton CP, Khanna D. Systemic sclerosis. Lancet. 2017;390(10103):1685-99.

9. Kucharz EJ, Kopeć-Mȩdrek M. Systemic sclerosis sine scleroderma. Adv Clin Exp Med. 2017;26(5):875-80.

10. Muratore M, Quarta L, Raho L, Costanza D, Frisenda S, Calcagnile F, et al. Management of cutaneous discomfort in Patients With Scleroderma : a Clinical Trial. Reumatismo. 2013;65(5):240-7.

11. 1ndréasson K, Saxne T, Bergknut C, Hesselstrand R, Englund M. Prevalence and incidence of systemic sclerosis in southern Sweden: Population-based data with case ascertainment using the 1980 ARA criteria and the proposed ACR-EULAR classification criteria. Ann Rheum Di. 2014;73(10):1788-92.

12. Gintrac M. Note sur la sclerodermie. Rev Med Chir Paris. 1847; 2: 263-81.

13. Gupta K, Bhari N, Verma KK, Gupta S, Urdiales-Gálvez F, Delgado NE, et al. Use of Lipotransfer in Scleroderma. Aesthetic Plast Surg. 2017;43(2):S33-7.

14. Coleman SR. Structural fat grafting: more than a permanent filler. Plast Reconstr Surg. 2006;118(3 Suppl):108S-120S

15. 15. Oh CK, Lee J, Jang BS, Kang YS, Bae YC, Kwon KS, et al. Treatment of atrophies secondary to trilinear scleroderma en coup de sabre by autologous tissue cocktail injection. Dermatol Surg. 2003;29(10):1073-1075.

16. Mateus A PE. Cosmiatria e Láser: pratica no consultorio médico. São Paulo: AC Famacêutica. 2012;104-7.

17. 17. I. GACC. Cirurgia dermatológica. 3 ed. São Paulo: Ed Atheneu. 2017;926-46.

18. 1akhari A, Berkland C. Applications and emerging trends of hyaluronic acid in tissue engineering, as a dermal filler, and in osteoarthritis treatment. Acta Biomater. 2013;9(7):7081-92.

19. 1aurent TC, Fraser JR. Hyaluronan. FASEB J. 1992;6(7):2397-404.

20. Thareja SK, Sadhwani D, Alan Fenske N. En coupe de sabre morphea treated with hyaluronic acid filler. Report of a case and review of the literature. Int J Dermatol. 2015;54(7):823-6.

21. Choksi AN, Orringer JS. Linear morphea-induced atrophy treated with hyaluronic acid filler injections. Dermatol Surg. 2011;37(6):880-3.

22. Wang F, Garza LA, Kang S, Varani J, Orringer JS, Fisher GJ, et al. In vivo stimulation of de novo collagen production caused by cross-linked hyaluronic acid dermal filler injection in photodamaged human skin. Arch Dermatol. 2007;143(2):155-63.

23. Braz A, Sakuma TH. Atlas de anatomia e preenchimento global da face. Rio Janeiro: Guanabara Koogan. 2018;256-326.

24. Ayres EL, Sandoval MHL. Preenchedores. 2 ed. Rio Janeiro: Guanabara Koogan. 2018;70-188.

25. de Maio M1, Swift A, Signorini M, Fagien S; Aesthetic Leaders in Facial Aesthetics Consensus Committee. Facial Assessment and Injection Guide fot Botulinum Toxin and Injectable Hyaluronic Acid Fillers. Plast Recontstructive Surg. 2017;140(3):393e-404e.


Licença Creative Commons All content the journal, except where identified, is under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International license - ISSN-e 1984-8773