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Relato de casos

Necrose cutânea do tecido enxertado decorrente de tabagismo

Ana Cláudia Cavalcante Espósito1; Angela Sanderson2; Jorge Ocampo-Garza2; Gustavo Alonso1; Carlos D’Apparecida S. Machado Filho2; Luiz Roberto Terzian1

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.20181021034

Data de recebimento: 22/06/2017

Data de aprovação: 21/09/2017


Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do ABC - Santo André (SP), Brasil

Suporte financeiro: Nenhum

Conflito de interesse: Nenhum


Abstract

A cicatrização adequada das feridas cirúrgicas é influenciada pela técnica operatória, pela presença de intercorrências pós-cirúrgicas e pelos hábitos de vida do paciente. Relatamos caso de paciente submetido a exérese de carcinoma basocelular por cirurgia micrográfica de Mohs e reconstrução com enxertia cutânea palpebral. No pós-operatório houve necrose do enxerto devido má perfusão do leito cirúrgico imputada ao tabagismo. O tabagismo interfere na embebição plasmática e neovascularização do enxerto, além de promover estresse oxidativo e disfunção endotelial. O cirurgião deve orientar a suspensão do tabagismo por pelo menos quatro semanas antes do procedimento, a fim de evitar maiores riscos de complicações.


Keywords: Carcinoma basocelular; Cirurgia de mohs; Hábito de fumar; Sobrevivência de enxerto; Necrose


INTRODUÇÃO

Tumores cutâneos localizados em regiões periorificiais - periorbital, perioral, ponta e asa nasal - devem ser tratados com atenção. A retração tecidual torna-se mais crítica nas áreas de bordas livres e, consequentemente, há maior chance de comprometimento funcional frente a reconstruções inadequadas.1,2 Nessas localizações, retalhos e enxertos podem ser utilizados para o fechamento do defeito cirúrgico, objetivando a manutenção da função e da estética.

A cicatrização adequada das feridas cirúrgicas sofre influência da técnica executada pelo cirurgião, de intercorrências operatórias e pós-operatórias, bem como de fatores próprios do paciente e seus hábitos de vida.

Relatamos e discutimos caso de paciente submetido a enxertia cutânea palpebral, cujo resultado foi insatisfatório no pós-operatório imediato em decorrência da má perfusão tecidual do leito cirúrgico imputada ao tabagismo.

 

RELATO DO CASO

Homem de 78 anos relatava surgimento de lesão assintomática e de crescimento lento há dez anos na pálpebra superior direita. O paciente era tabagista (fumava três maços ao dia há 63 anos), hipertenso (em uso de enalapril 10mg de 12/12 horas) e teve acidente vascular cerebral há nove anos. Havia sido diagnosticado recentemente com doença pulmonar obstrutiva crônica, decorrente da elevada carga tabágica, mas não estava utilizando medicações específicas.

Ao exame dermatológico, apresentava nódulo perláceo de 1,6cm por 1cm com centro deprimido e limites imprecisos, localizado no canto interno do olho direito que acometia tanto a pálpebra superior quanto inferior (Figura 1). À dermatoscopia, a lesão apresentava telangiectasias arboriformes na superfície. As unhas do paciente eram amareladas, assim como os pelos da barba.

O paciente foi submetido a cirurgia micrográfica de Mohs, com duas fases para remoção completa do tumor. O tamanho cirúrgico final foi de 2,3cm por 1,8cm, e a ferida operatória acometia canto interno do olho direito, pálpebra superior e inferior, bem como lateral nasal direita (proximal) (Figura 2). Tratava-se de carcinoma basocelular sólido e adenoide.

Devido ao acometimento de três unidades estéticas em área de borda livre e pouca disponibilidade local de tecido que pudesse ser mobilizado sem interferir na abertura ocular, optou-se por fechamento da ferida cirúrgica através de enxerto cutâneo de pele total. A área doadora escolhida foi a pálpebra superior contralateral, devido à presença de tecido redundante e com características semelhantes ao da área receptora. O enxerto delgado contendo epiderme e derme foi suturado às bordas da ferida com fio de náilon 6-0. Para aumentar a adesão ao leito, foi fixado um curativo de Brown sobre o enxerto.

No sétimo dia pós-operatório, o curativo de Brown e os pontos foram removidos. O enxerto apresentava cor violácea com áreas de perda da epiderme e era recoberto por tecido fibrinoide. Foi realizada apenas limpeza local orientando-se a manter o local umedecido (Figura 3).

Já no 14º dia, toda a espessura do enxerto estava negra e endurecida (necrose de espessura total). Foi feito desbridamento com lâmina e mantido curativo oclusivo para garantir a umidade do leito da ferida (Figura 4-A). No 21º dia, o paciente apresentava úlcera secundária à perda do enxerto por necrose (Figura 4-B).

Na quarta semana pós-operatória, o processo de cicatrização por segunda intenção garantiu o fechamento completo do defeito cirúrgico (Figura 5).

 

DISCUSSÃO

Para a reconstrução de defeitos cirúrgicos faciais, as áreas doadoras de enxerto mais utilizadas são a pele das regiões retroauricular, preauricular e palpebral superior. A região palpebral apresenta menor espessura da epiderme e derme, o que facilita a aderência ao leito cirúrgico e sua nutrição.2 Com o processo de envelhecimento, há acúmulo de pele na região, e sua utilização como área doadora de enxerto gera, aliás, ganho cosmético ao paciente.2

A integração do enxerto envolve aderência ao leito, perfusão adequada e viabilidade da pele doadora. Nas primeiras 24 horas, sua nutrição e fixação se dá por transudação a partir do leito, formando uma malha de fibrina. A segunda fase é chamada inosculatória, na qual há anastomose de pequenos capilares comunicando a superfície do enxerto ao leito receptor. Do quinto ao sétimo dia pós-operatório há fluxo sanguíneo verdadeiro, em decorrência do surgimento e proliferação de novos vasos.3

Dos enxertos de pele total, 20% apresentam algum grau de necrose. Na maioria das vezes, há alterações apenas na camada granulosa, lúcida e córnea (necrose parcial). Quando as camadas basal e espinhosa são acometidas, há necrose total do enxerto.4

Cerca de 12% dos pacientes submetidos à cirurgia micrográfica de Mohs apresentam complicações pós-operatórias, sendo que a perda do enxerto representa um terço delas.5 Os fatores que podem deflagar a necrose são: formação de hematoma ou seroma, infecção, leito pouco vascularizado, má adesão do enxerto ao leito, enxerto muito espesso e com tecido celular subcutâneo. As taxas de infecção, mesmo quando ajustadas ao tipo de cirurgia, tamanho da incisão e trauma tecidual, aumentam linearmente com maior tempo cirúrgico.6,7 Cirurgias cutâneas que envolvem a realização de enxertia são, em geral, procedimentos de maior duração e complexidade, podendo resultar em risco de infecção pós-operatória. Os enxertos cutâneos de espessura total são mais resistentes à infecção dos que os de espessura parcial, e a perda do enxerto em decorrência da infecção é mais comum nos enxertos das extremidades inferiores ou naqueles realizados em múltiplos locais no mesmo ato cirúrgico.8

Características do pacientes, como obesidade, desnutrição, anemia, imunossupressão, uso de medicamentos e comorbidades também alteram sobremaneira a cicatrização.9,10

Pérez-Guisado e seus colaboradores evidenciaram que 18% dos pacientes tabagistas apresentaram necrose do enxerto.11 Esse risco está relacionado ao número de maços de cigarro consumidos por dia: pacientes que apresentam necrose fumam significativamente mais do que aqueles também tabagistas que não apresentam necrose após enxertia.12 O tabagismo induz diminuição do número de macrófagos e neutróficos e maior agregação plaquetária, o que estimula a formação de microcoágulos.13 A nicotina causa vasocontrição, que dura até dez minutos após cessar o fumo, facilitando a ocorrência de oclusão microvascular aguda e necrose tecidual.12

A fumaça do cigarro contém monóxido de carbono e cianeto de hidrogênio. O primeiro tem 220 vezes mais afinidade pela hemoglobina do que o oxigênio, diminuindo a capacidade de transporte de oxigênio para os tecidos. Já o cianeto de hidrogênio é capaz de inibir a respiração celular, resultando em acidose lática e hipóxia citotóxica.12 Cavichio e seus colaboradores identificaram dez estudos evidenciando que a cessação do tabagismo por um período mínimo de quatro semanas é benéfica na redução de complicações da cicatrização de feridas cirúrgicas.14

Nas cirurgias de enxertia periocular, 15% dos pacientes apresentam complicações. Desse total, a perda do enxerto representa 10%.15 No caso clínico apresentado, a área doadora (pálpebra superior contralateral) foi adequada, bem como execução da técnica cirúrgica. Não houve infeção no pós-operatório, deslocamento do enxerto ou mesmo formação de hematoma. O insucesso da reconstrução foi atribuído a má perfusão do leito induzida pelo tabagismo de longa data, que também foi responsável pela coloração amarelada das unhas e dos pelos da barba, bem como desenvolvimento da doença pulmonar obstrutiva crônica.

 

CONCLUSÃO

O tabagismo é fator de complicação para a cicatrização, já que interfere no processo de embebição plasmática e neovascularização do enxerto. O estímulo inflamatório, estresse oxidativo e disfunção endotelial causados pelo cigarro são promotores de necrose do tecido enxertado.

O cirurgião deve estar atento ao maior risco de complicações no paciente tabagista e precisa orientá-lo a suspender o tabagismo por pelo menos quatro semanas antes do procedimento.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Ana Cláudia Cavalcante Espósito | ORCID 0000-0001-9283-2354
Estudo dos relatos da literatura, compilação dos artigos, elaboração do primeiro manuscrito.

Angela Sanderson | ORCID 0000-0002-3293-4508
Compilação dos dados da literatura, edição das imagens, correção da primeira versão do manuscrito, organização das referências.

Jorge Ocampo-Garza | ORCID 0000-0002-1307-3407
Compilação dos dados da literatura, edição das imagens, correção da primeira versão do manuscrito, organização das referências.

Gustavo Alonso | ORCID 0000-0003-0484-6399
Revisão final do manuscrito, preparo da versão para submissão.

Carlos D'Apparecida S. Machado Filho | ORCID 0000-0003-4362-1563
Revisão final do manuscrito, preparo da versão para submissão.

Luiz Roberto Terzian | ORCID 0000-0002-9342-7227
Revisão final do manuscrito, preparo da versão para submissão.

 

REFERÊNCIAS

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5. Leibovitch I, Huilgol SC, Richards S, Paver R, Selva D. The Australian Mohs database: short-term recipient-site complications in full-thickness skin grafts. Dermatol Surg. 2006;32(11):1364-8.

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11. Pérez-Guisado J, Fidalgo-Rodríguez FT, Gaston KL, Rioja LF, Thomas SJ. Skin graft, smoking and diabetes mellitus type 2. MEDICINA (Buenos Aires). 2012; 72: 467-70.

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