Bhertha M. Tamura1; Ana Carolina Junqueira Ferolla1; Cândida Naira L. e L. Santana2
Data de recebimento: 11/11/2017
Data de aprovação: 18/02/2018
Trabalho realizado no Departamento de Dermatologia, Ambulatório de Especialidades Barradas - São Paulo (SP), Brasil.
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum
A orelha é estrutura com peculiaridades anatômicas, localizada em área exposta a traumas e suscetível a uma série de dermatoses que merecem atenção, muitas vezes subdiagnosticadas pelos dermatologistas. Realizou-se revisão de literatura incluindo a embriologia e a anatomia do pavilhão auricular, bem como diagnóstico e tratamento das lesões traumáticas de natureza física e por alterações de temperatura, entre outras.
Keywords: Anatomia; Orelha; Otopatias
O ouvido é dividido em três partes principais: ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno. O externo é composto pelo pavilhão auricular e canal auditivo.1
O pavilhão auricular ou aurícula é oriundo do segundo arco faríngeo, podendo ser observado pela primeira vez na sexta semana de gestação. O revestimento do canal auditivo externo é contínuo com a pele e com a superfície externa do tímpano, tem origem ectodérmica1 e contém glândulas sebáceas apócrinas modificadas, denominadas glândulas ceruminosas e glândulas sebáceas, ambas associadas a folículos pilosos.2
Devido a sua posição anatômica, o pavilhão auricular está sujeito a traumas e exposições térmicas, além de poder apresentar diversos sinais associados a diferentes doenças cutâneas e sistêmicas.
A aurícula se desenvolve a partir da primeira crista branquial e é composta primariamente de cartilagem e pele que estão aderidas firmemente na região anterior e em menor grau na posterior. Devido a sua localização anatômica o pavilhão auricular está comumente exposto ao sol e ao frio. As neoplasias da cartilagem da aurícula são raras; a maioria ocorre na pele ou nos anexos.
O canal auditivo externo tem de dois a 3cm de comprimento e é composto por uma parte cartilaginosa em uma parte óssea. Somente a parte cartilaginosa do canal contém folículos pilosos, glândulas sebáceas e ceruminosas. Na porção superior e posterior do canal, a cartilagem é incompleta e preenchida por tecido fibroso. A junção temporomandibular e a glândula parótida se encontram na região anterior ao canal auditivo, estando o osso mastoide e o nervo facial localizados posteriormente.
A inervação da aurícula e do canal externo é realizada pelo nervo auricular magno, por ramo auricular do nervo vago, ramo auriculotemporal do nervo trigêmeo e pelo nervo occipital inferior.1
O desenvolvimento da orelha externa começa no final da quarta semana gestacional, a partir de seis tubérculos auriculares. Alterações congênitas durante a fusão dos tubérculos não são raras devido ao complexo desenvolvimento dos tubérculos.
Os primeiros aparecem na região cervical inferior e com o desenvolvimento da mandíbula alongam-se em direção ao crânio mudando a posição das conchas para a altura dos olhos. A posição mais baixa das conchas é frequentemente associada a malformações, na maioria das vezes cromossômicas.
A partir da porção posterior do primeiro sulco faríngeo, o meato acústico externo cresce para o interior como um tubo afunilado, até atingir o revestimento endodérmico da cavidade timpânica. No início da nona semana, as células epiteliais do assoalho do meato acústico proliferam e formam uma placa do meato acústico. Essa placa se degenera no sétimo mês, e a surdez congênita ocorre quando ela se mantém.1,2
A orelha externa consiste inferiormente do lóbulo, parte macia e arredondada. A moldura externa contínua ao lóbulo é estrutura firme que se denomina hélice. A ela, superiormente se segue a escafa, medialmente a anti-hélix (moldura oponente à hélix) e em seu extremo caudal o antitragus. Medialmente à anti-hélix a cartilagem forma a concha, e superiormente uma outra depressão denominada fossa triangular. Medialmente na área de adesão da orelha ao segmento cefálico circundando o meato acústico (formado pela parte timpânica do temporal) em formato de “S” e o protegendo, encontramos o tragus (Figura 1).
Os músculos da orelha são raramente valorizados devido a seu caráter rudimentar, mas precisam ser conhecidos e descritos. Podem ser considerados músculos da mímica pertencentes a um sistema de esfíncteres, que em vários animais ainda é bastante proeminente com funções como a movimentação das orelhas ou fechamento do meato acústico durante a hibernação.1,2 Há intensa vascularização da orelha, especialmente no lóbulo, sendo que os vasos se encontram na base de sua implantação.
O trauma da aurícula ocorre frequentemente por contusão, laceração ou perda de toda aurícula. Em alguns casos a aurícula pode ser ressuturada com sucesso. A técnica reconstrutora
Figura 1: Representação esquemática da anatomia externa da orelha
deve seguir os conceitos básicos da cirurgia plástica. A sutura da pele deve ser cuidadosamente realizada com o controle rigoroso do sangramento porque a pele é justaposta à cartilagem subjacente. As áreas extremamente maceradas devem ser removidas procurando-se minimizar as deformidades e cicatrizes.
O hematoma (Figura 2) da aurícula não ocorre apenas em lutadores, boxeadores, jogadores de rugby, futebol e outros esportes, mas também é comum em crianças. Os hematomas são comuns em esportes com contato físico como as lutas, devido à exposição da orelha. Quando a orelha é atingida pode ocorrer um descolamento entre o pericôndrio a cartilagem, criando-se um espaço preenchido por sangue, e constituindo um hematoma. Como a cartilagem não tem circulação própria, esse espaço pode redundar em necrose ou infecção.
O trauma é a causa mais comum de hematomas embora discrasias sanguíneas possam levar a pequenas hemorragias. A região externa da aurícula é a área mais afetada devido a sua posição exposta. O sangue se coleta rapidamente após o trauma, dissecando o tecido entre o pericôndrio e a cartilagem e criando uma coleção vinhosa que envolve toda a aurícula. Se essa coleção não for tratada precocemente, o sangue se organiza, transformando-se numa massa fibrosa e causando a necrose da cartilagem pela isquemia regional. Essa massa cicatricial especialmente após traumas repetitivos cria uma deformidade denominada “orelha em couve-flor.3
O tratamento é baseado na drenagem rápida do sangue coletado. Devido à possibilidade de ocorrer uma pericondrite, deve-se fazê-lo assepticamente. Utilizam-se antibióticos de largo espectro, incluindo ação contra Pseudomonas aeruginosa nos períodos pré e pós-operatório. A incisão deve ser paralela à hélice, na escafa, fazendo-se abertura suficiente para aspirar inteiramente o hematoma, realizada precocemente para evitar a organização do mesmo. Nesse caso, haveria necessidade de curetagem. Podem ser colocados drenos pequenos para prevenir nova coleção de sangue ou soro, porém não se deve deixá-lo mais do que 48 horas devido ao risco de infecção.
Um curativo compressivo deve ser adaptado ao formato da orelha sobre a área do hematoma e outro na região posterior da aurícula, podendo ser realizada sutura que atravessa toda a espessura da aurícula. Deve ser mantido por no mínimo 48 horas. Coleções pequenas residuais devem ser drenadas respeitando-se as técnicas de assepsia. Utiliza-se antibiótico durante cinco a sete dias, e a ocorrência de pericondrite deve ser tratada imediatamente.
As lacerações da aurícula exigem o fechamento meticuloso e detalhado, o realinhamento dos fragmentos e a manutenção dos contornos da aurícula. Deve ser feita a comparação com a orelha oposta para que possa ser mantida a maior simetria possível. As lacerações e abrasões podem ser tratadas sob anestesia local, porém, em crianças e nos casos severos ou extensos a opção é a anestesia geral. São comuns casos de laceração e ruptura do lóbulo devidas ao trauma do orifício do brinco.4
A ferida deve ser inspecionada e lavada cuidadosa e insistentemente para a remoção de qualquer material estranho ou necrosado. Deve-se realizar um desbridamento, (Figura 3) o mais conservador possível. Lacerações simples da pele são fechadas geralmente com fio mononylon seis zeros e a cartilagem com fio absorvível. Pode ser necessário remover uma pequena faixa de cartilagem ao longo da laceração para facilitar o fechamento do pericôndrio. Deve ser mantido o formato original da borda da hélice.
São necessários curativo compressivo durante 24 horas e antibióticos orais durante uma semana. Quando a laceração se estende até o canal auditivo, após a sutura aplica-se um curativo dentro do canal para moldá-lo, mantendo-o durante várias semanas para evitar estenose.
As abrasões devem ser limpas e cobertas por gaze, antibiótico e curativo oclusivo durante 24 horas. Após a retirada a ferida é tratada apenas com curativo simples até que ocorra a reepitelização. Se houver dor severa sob o curativo, ele deve ser removido imediatamente, e a ferida cuidadosamente examinada, pois podem ocorrer isquemia, hematoma ou infecção. Quando há necessidade de sutura, deve-se iniciá-la nos locais de acesso cirúrgico mais difícil, tais como meato auditivo e concha, terminando-se a cirurgia nos locais periféricos. Em alguns casos de ferimentos lacerantes extensos, a ressecção em cunha ou o debridamento mínimo é necessário, devendo-se aproximar as bordas de maneira a não alterar a curvatura normal da orelha.
Nos ferimentos abrasivos extensos ou nos casos em que ocorreram pequenas perdas de pele, procede-se à limpeza exaustiva da lesão e à aplicação de curativo oclusivo com gaze de rayon vaselinada. A epitelização se processará de maneira satisfatória no prazo de sete a dez dias, observando-se que a orelha tem enorme capacidade de epitelização secundária.
Nos casos em que houver perda significativa de pele,5 com exposição do pericôndrio, utilizam-se enxertos de pele como medida reparadora. A área doadora preferencial é a região retroauricular contralateral, por apresentar pele de coloração e textura semelhantes.
Quando há perda de pericôndrio, com exposição de cartilagem, podem ser utilizados: ressecção em cunha e fechamento primário, retalho local, excisão da cartilagem e enxerto de pele, ou ainda manutenção do ferimento aberto. A ressecção em cunha, com fechamento primário, é utilizada quando a lesão é pequena ou localizada perifericamente.
Quando se utilizam retalhos locais, a área preferencial é a região retroauricular. Em alguns casos, pode-se levar o retalho para a área exposta e, em segundo tempo, retorná-lo ao seu local de origem, utilizando enxerto de pele na área cruenta. Em outros casos a cartilagem pode ser ressecada, enxertando-se a área cruenta. Esse procedimento tem a vantagem de ser realizado em um único tempo cirúrgico.6
Outra alternativa seria manter o ferimento aberto, trocando frequentemente o curativo com gaze embebida em soro fisiológico, aguardando-se a formação de tecido de granulação e realizando a reparação secundária em tempo posterior.
Quando há desinserção muito importante da orelha, mas a circulação está mantida graças a um pequeno pedículo, deve-se ressuturar os tecidos em sua posição de origem, com o menor trauma possível. Na fixação do arcabouço cartilaginoso utiliza-se fio de náilon monofilamentar 6-0 com a finalidade de mantê-lo em posição. É necessário fazer a reavaliação da viabilidade tecidual 48 horas após o procedimento inicial.
Strauch3 observou a sobrevivência da orelha quando o pedículo era constituído apenas por uma porção do lóbulo ou de pequeno segmento junto à inserção do pavilhão no segmento cefálico. O tratamento ideal nas avulsões parciais com exposição de cartilagem deve visar a sua imediata cobertura. A cartilagem pode ser preservada com um enxerto ou com um segmento parcialmente aderido, coberta por retalho adjacente ou sepultada sob retalho (em bolsa). Os traumas podem variar de perda parcial a total da aurícula. Após anestesia, limpeza e debridamento, como já descrito, a extensão da perda tecidual e a condição do restante da estrutura determina se a ferida pode ou não ser suturada primariamente ou se necessita de reconstrução.
A perda da pele com pericôndrio intacto pode ser reparada com um enxerto parcial ou total. A pele retroauricular fornece tecido cuja cor combina com a da pele da aurícula; as áreas supraclaviculares também podem ser utilizadas. Se houver perda de pele e pericôndrio, há necessidade de um tecido vascularizado para cobrir a cartilagem. Podemos então utilizar um retalho da área pré ou retroauricular, mas, retalhos pré-auriculares para a superfície lateral da aurícula podem parecer espessos e têm resultado cosmético pouco satisfatório. Se a área de cartilagem exposta for pequena, simplesmente pode ser excisada, e as paredes da ferida ressuturadas. Se não for possível utilizar nenhuma dessas alternativas, pode-se esperar a granulação do tecido, mantendo-se apenas curativos locais até que possa ser feito um enxerto.
A reconstrução de perdas teciduais totais,5 como a região da hélice, do lóbulo da orelha, e defeitos segmentares envolvendo a aurícula em sua região superior, média ou inferior pode ser bastante complexa ou exigir múltiplas fases. O método de escolha para a correção dependerá das dimensões do defeito. Defeitos com menos de 2cm podem ser transformados em pequenos fusos e fechados primariamente. Benchemam et al 7 descreveu uma técnica (Antia-Buch) com o uso de retalhos condrocutâneos superiores e inferiores da hélice adjacente ao defeito. Após a incisão da pele e cartilagem da superfície lateral da aurícula, a pele da superfície medial é amplamente divulsionada permitindo que os retalhos avancem sobre o defeito. Essas técnicas de avanço podem corrigir grandes defeitos, porém às vezes a diminuição do tamanho da orelha é inaceitável. Nesses casos, deve-se fazer reconstrução em etapas, trazendo outro tecido ao defeito para reconstruir a hélice. Existe uma variedade de técnicas para rotação de retalhos tubulares para esse propósito. Outra opção envolve o avanço de pele da superfície medial da aurícula e da área retroauricular, que pode ser utilizado em combinação com enxertos de cartilagem. Pode-se utilizar essa técnica também em lesões mais extensas da orelha. Quando há a necessidade de várias fases cirúrgicas, não se deve deixar a cartilagem exposta. Pode-se cobri-la embutindo-a sob a pele retroauricular onde a área acometida é lavada, limpa, dermoabrasada e anatomicamente ressuturada no coto auricular remanescente. Cria-se, assim, uma bolsa ou túnel retroauricular que abriga esse coto. Duas semanas depois, a porção embutida é reexposta para que se complete a epitelização. Isso fornece uma proteção adequada, e a pele sobrejacente pode ser utilizada para a primeira fase da reconstrução. A cartilagem conchal da orelha contralateral pode ser utilizada para o enxerto composto. Essa técnica pode ser utilizada também para reconstruir orelhas com perda segmentar maior.
Na literatura o sucesso do reimplante de orelhas totalmente decepadas foi à custa de terapia agressiva com antibióticos endovenosos, anticoagulantes e vasodilatadores. A congestão venosa deve ser aliviada por múltiplas puncturas ou incisões para drenagem.
Atualmente realiza-se a microcirurgia quando possível, com reanastomoses vasculares realizadas com técnicas microcirúrgicas. Há necessidade também de anticoagulação, antibióticos, curativos frequentes e técnicas de drenagem venosa.
A peça amputada deve ser transportada em condições estéreis, resfriada e ressuturada o mais brevemente possível. Quando não for possível resgatá-la, podemos optar por próteses fixas, por implantes osteointegrados ou reconstrução auricular total.6
As amputações da orelha são de solução cirúrgica extremamente complexa. Até recentemente, a única alternativa viável consistia em salvar o arcabouço cartilaginoso.
As tentativas cautelosas de salvar o arcabouço cartilaginoso extremamente traumatizado podem prejudicar a reconstrução. Isso ocorre pelo fato de a cartilagem traumatizada ou alterada produzir detalhes ou projeção inadequados.
Técnicas atuais de reconstrução utilizando enxertos de cartilagem autógena com cobertura por retalho da fáscia do músculo temporal oferecem melhores resultados do que aqueles obtidos com tentativas de preservação da cartilagem em locais distantes.
Nos casos de amputação, tratados com inserção da cartilagem desnuda por debaixo do retalho retroauricular e liberação do retalho em duas a quatro semanas, nota-se retração tardia do segmento reinserido, bem como perda da definição e do contorno da orelha.
As reconstruções com cartilagem autógena, utilizando-se segmento da concha da orelha contralateral ou cartilagem costal, associadas à cobertura cutânea adequada, frequentemente produzem orelhas mais aceitáveis do ponto de vista estético.
O reimplante de grandes segmentos ou de toda a orelha como enxerto composto está fadado, em alguns casos ao insucesso, exceto se a área receptora for inicialmente preparada no intuito de aumentar a vascularização.3
Os conceitos básicos de reparações das lesões de orelha são as descritas anteriormente com algumas considerações específicas. Em primeiro lugar, identificar o animal (incluído o humano) e a extensão da lesão. Assim como outras feridas, é necessário documentar fotograficamente, preocupar-se com a profilaxia do tétano e detectar se há necessidade da profilaxia antirrábica.
Todos os pacientes devem ser tratados com antibiótico. Tais lesões têm contaminação por micro-organismos tanto aeróbios como anaeróbios,4 sendo os mais frequentemente detectados nas mordidas por humanos: S. aureus, Pasteurella multocida, Streptococci, Bacteroides e Fusobacterium sp. A penicilina ou a ampicilina cobre a maioria dos patógenos incluindo o P multocida. O clavulonato de amoxacilina e a ticarcilina têm maior espectro de ação, incluindo o S. aureus e os produtores de betalactamase.
O tratamento se inicia com a limpeza detalhada e a irrigação da ferida. Se ela for muito extensa e demandar reconstrução cirúrgica deve-se considerar se isso será feito imediata ou posteriormente. Há controvérsias, mas a reconstrução posterior nos casos de mordida humana grave ou lesões que ocorreram há várias horas é factível se o intervalo de tempo for inferior a cinco horas, com a ferida bem limpa e que possa ser suturada primariamente. Caso o reparo não possa ser realizado de imediato devem ser aplicados curativos locais até que haja tecido de granulação local, limpo e sem infecções.
Provoca trauma localizado que resulta da exposição ao frio8 sendo a perda tecidual devida a lesões celular e vascular direta. Estudos em animais demonstram que após o congelamento, os condrócitos mostram evidências imediatas de lesão acompanhadas de alterações mínimas das células epidérmicas. A microvasculatura, no entanto, apresenta mudança dramática, ocorrendo separação das células endoteliais da lâmina elástica interna (formação de cristais de gelo), estase e extravasamento de hemácias, edema intersticial, baixo fluxo e necrose tecidual. A liberação de metabólitos do ácido aracdônico, o tromboxane A2 e prostaglandinas pioram a necrose e agem na regulação da vascularização de um modo ainda não totalmente conhecido levando à isquemia e perda tecidual.
A lesão por frio pode ser superficial ou profunda. Os tecidos profundos se mantêm viáveis se o congelamento for superficial, o que não acontece se ele atingir as camadas mais inferiores.
Esse tipo de lesão é mais frequente nos climas frios, e a região auricular é frequentemente envolvida, por sua posição exposta e pela baixa quantidade de tecido subcutâneo para proteger os vasos sanguíneos. O vento, a umidade e a temperatura são determinantes da severidade da lesão. Inicialmente, há vasoconstricção deixando a orelha, especialmente nas partes mais externas, esbranquiçada e fria ao toque. Seguem-se a hiperemia e o edema que prejudicam ainda mais a permeabilidade capilar. A cristalização do fluido intracelular pode ser primariamente responsável por isso. A orelha se torna edemaciada, vermelha, amolecida e pode apresentar bolhas com saída de secreção fluida através da pele. No estágio final da queimadura pelo frio, os capilares regionais se tornam repletos de células vermelhas devido à baixa velocidade da circulação através dos capilares e pela perda do soro em função da permeabilidade anormal. A recuperação é lenta porque ocorrem obstrução, trombose e isquemia, levando à necrose do tecido afetado.
O tratamento é baseado no grau de severidade da lesão. A orelha deve ser tratada gentilmente para minimizar as lesões num tecido já traumatizado e desvitalizado. Deve-se evitar massagem e outras manipulações. Deixar que a temperatura da orelha retorne gradativamente à temperatura corporal. Quando ocorrer a vasodilatação serão observados sintomas de prurido e dor severa, que deve ser controlada com analgésicos. Nas crianças há necessidade de restringir as mãos. Nos casos severos ou de exposição prolongada, recomenda-se o uso de anticoagulantes para minimizar a trombose e a coagulação intravascular, devendo-se continuar esse tratamento até que se determine exatamente a área danificada. Em todos os casos podem ser usados estrogênios conjugados e bioflavonoides por via endovenosa para reduzir a permeabilidade capilar anormal. Os antibióticos podem ser necessários para prevenir a infecção do tecido desvitalizado. Se a necrose de algumas áreas da aurícula se tornarem evidentes deve-se aguardar sua delimitação completa antes que a excisão cirúrgica seja realizada. A separação espontânea do tecido desvitalizado permite que a cirurgia seja econômica, e o resultado cosmético mais adequado. Se houver indicações de infecção e gangrena a excisão cirúrgica deve ser realizada imediatamente.
O frio também pode ser importante fator quando se trata de erupção juvenil da primavera, condrodermatite nodular da hélice, eritema pérnio, lúpus eritematoso e crioglobulinemia. Lesões semelhantes àquelas provocadas pelo frio podem ser desencadeadas por uso excessivo de spray de etilclorida para o piercing na orelha.2,5
A aurícula é particularmente suscetível ao trauma térmico9 devido a sua posição exposta e à mínima quantidade de tecido subcutâneo separando a pele do pericôndrio. Pode-se perder tecido devido ao trauma térmico direto, e a isquemia dérmica progressiva parece resultar de uma interação complexa de fatores, incluindo o aumento da permeabilidade vascular com a formação de edema significante e a liberação de mediadores químicos com potentes efeitos na função vascular. O tecido danificado serve como substrato para infecções e finalmente a perda da cartilagem e a subsequente deformidade auricular.
Queimaduras de primeiro grau envolvem apenas a epiderme. A orelha fica eritematosa, quente e dolorosa ao tato, e se toma conduta expectante. As queimaduras de segundo grau envolvem a epiderme e parte da derme, podendo ser divididas em profundas e superficiais. Queimadura de terceiro grau ou de espessura total é aquela em que ocorre a destruição total da epiderme e da derme. Muitas vezes a diferenciação entre a queimadura parcial profunda e a de espessura total pode ser difícil. Leve edema pode ocorrer numa queimadura profunda e uma queimadura de espessura total pode ocorrer sem dor ou dessecação de tecidos, levando à autoamputação parcial ou total da orelha. A falta da sensação de dor não auxilia a determinação da profundidade da queimadura pois é variável nas queimaduras de segundo e terceiro graus. O principal cuidado nos casos de queimaduras de segundo e terceiro graus é a prevenção da condricte, infecção séria que leva também à perda da cartilagem. Deve-se realizar um cuidado meticuloso da ferida e evitar a pressão local. Purdue9 descreve regimes que envolvem a lavagem gentil da orelha e o uso de sabonetes antibacterianos uma a duas vezes por dia seguida da aplicação de cremes antibióticos, diminuindo assim a incidência da condrite para intervalo de zero a 3%. A cartilagem exposta devido a queimaduras severas deve ser coberta com tecido vascularizado para tentar preservá-la.
A maioria das outras formas de trauma tendem a ser artefactuais ou iatrogênicas. O piercing pode levar à infecção, sendo que as complicação decorrente desse procedimento podem chegar a 34%, com formação de queloide, dermatite de contato por níquel e pseudolinfoma do lóbulo da orelha. Ruptura da membrana timpânica e atresia adquirida do canal auditivo externo são geralmente resultados de trauma cirúrgico ou tentativas intempestivas para remover corpo estranho ou cerúmen impactados. Contratura do meato acústico externo pode seguir as queimaduras.
Trata-se de lesão fissurada, algumas vezes apresentando-se como pápula eritematosa e descamativa lembrando lesão de ceratose actínica. Ocorre atrás ou na parte mais superior da orelha, na junção com o couro cabeludo causada por hastes de óculos mal ajustados. O diagnóstico diferencial inclui o carcinoma basocelular, a ceratose actínica e o carcinoma espinocelular em fase inicial.6,10
Corpos estranhos no canal auditivo compõem um cenário comum nas emergências, mais comum na população abaixo de cinco anos de idade. Podem ser assintomáticos ou com dor, inflamação ou infecção no conduto auditivo externo,3 otorréia e tinido.11,12
Na infância a maior parte corresponde a pequenos objetos e grãos e na população adulta a algodão dos cotonetes. O tratamento é feito com a lavagem do ouvido ou por cirurgia. A lista de objetos que podem ser encontrados no canal auditivo é muito variada, sendo o cerúmen impactado causa frequente de irritação. Por outro lado, pouco cerúmen, especialmente em mulheres, pode levar ao prurido. Deve-se ter cuidado e atenção com o uso excessivo de algodão, excesso de limpeza ou coçadura do ouvido. O uso de objetos metálicos pode levar à dermatite de contato. As tentativas intempestivas para a retirada do objeto levam muitas lesões para o istmo ou outros locais. O corpo estranho, sendo menor do que o lúmen do canal pode ser removido por um fórceps de Hartmann. Objetos maiores devem ser “pescados” com uma alça, ou, em alguns casos, com injeção de água através da parede à semelhança da retirada de cerúmen, ou ainda, aspirados com sugadores adequados. No caso dos insetos, inicialmente devem ser mortos com tampão de algodão umedecido com éter, clorofórmio ou álcool durante cinco minutos e depois lavagem para sua retirada. Se a criança estiver agitada, há necessidade de anestesia geral. Muitos dos casos de trauma timpânico e dos ossículos ocorrem com movimentos das crianças durante esse tipo de procedimento. Sempre que objetos se instalarem além do istmo deve-se realizar a retirada sob anestesia. Moscas podem depositar seus ovos na orelha e a miíase resultante pode levar à dor, inflamação e ocasionalmente a complicações mais severas.
Pelos soltos no canal auditivo também podem ser causa de ruídos no ouvido.
A revisão realizada demonstra a grande variedade de afecções que podem atingir a orelha. Embora muitas vezes tenhamos a impressão de que as doenças atinjam a orelha por que ela faz parte do tegumento, o que é verdade na maioria dos casos, outras se referem exclusivamente a essa região pelas suas próprias características e função. Discorremos sobre as dermatites, trauma, infecções, deformidades congênitas até tumores benignos e malignos tornando o assunto extremamente interessante em termos dermatológicos e também do ponto de vista cirúrgico pelo conhecimento mais amplo permitindo abrir um leque em termos de diagnóstico diferencial e alternativa terapêutica.
Bhertha M. Tamura | ORCID 0000-0001-7259-2998
Concepção, redação e revisão
Ana Carolina Junqueira Ferolla | ORCID
Concepção, redação e revisão
Cândida Naira Lima e Lima Santana |ORCID 0000-0002-2693-0025
Concepção, redação e revisão
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