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Relato de casos

Criocirurgia como tratamento adjuvante na esporotricose: relato de três casos

Pedro Secchin1; Giselle Ribeiro Pereira Seabra2; Cleide Eiko Ishida3; David Rubem Azulay4; Nurimar Conceição Fernandes5

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.201793966

Data de recebimento: 25/01/2017
Data de aprovação: 21/05/2017
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum

Abstract

A esporotricose é doença causada pelo fungo dimorfo Sporothrix spp., e o número de casos vem aumentando, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, onde hoje é considerada um problema de saúde pública. O tratamento recomendado é com antifúngicos, mas em caso de persistência das lesões ou quando houver contraindicação, a criocirurgia é opção, pois o fungo é sensível a temperaturas extremas. São relatados três casos de esporotricose tratados com itraconazol e/ou iodeto de potássio durante mais de seis meses com resposta incompleta, nos quais a criocirurgia foi usada com sucesso como tratamento adjuvante.


Keywords: ESPOROTRICOSE; INFECÇÕES OPORTUNISTAS; CRIOCIRURGIA


INTRODUÇÃO

A esporotricose é doença causada pela inoculação do fungo dimorfo Sporothrix spp. na pele, usualmente em consequência da manipulação do solo e de vegetais contaminados.1,2 Além da manifestação rural, hoje ela é frequentemente urbana, dando-se a transmissão por intermédio de felinos infectados, a mais importante fonte de contaminação na cidade do Rio de Janeiro.2

Das formas clínicas da esporotricose - extracutânea, localizada/fixa e linfocutânea -, a última é a mais frequente em humanos e se apresenta com nódulos e gomas ao longo dos vasos linfáticos, que evoluem para ulceração nas áreas corpóreas acometidas.1,2 Os principais exames para o diagnóstico são o micológico (sobretudo a cultura), o histopatológico e a biologia molecular.1

Diferentes drogas têm sido usadas no tratamento da esporotricose. A escolha do medicamento depende da forma clínica, da morbidade do paciente, dos efeitos colaterais e das interações medicamentosas. O objetivo deste trabalho é relatar três casos de esporotricose, confirmados pelo exame micológico e tratados com itraconazol e/ou solução saturada de iodeto de potássio (IK) por tempo superior a seis meses, nos quais a criocirurgia com nitrogênio líquido (NL) foi utilizada como tratamento adjuvante.

 

RELATO DE CASOS

Caso 1: Paciente do sexo masculino, de 53 anos, residente no Rio de Janeiro-RJ, apresentou lesão nodular de 1cm de diâmetro no dorso da mão esquerda e placa arredondada e eritematosa no cotovelo esquerdo. Após dez meses e meio de tratamento com itraconazol 200mg/dia, as lesões tiveram pouca regressão (Figuras 1A e 1B), sendo indicada a criocirurgia. O equipamento utilizado foi o Cry-Ac® (Brymill, Ellington, USA) técnica spray intermitente, ponteira A, padrão sólido central, com margem de 0,5cm, dois ciclos de congelamento e descongelamento, com intervalo de quatro minutos entre eles (Figura 1C). Após duas semanas, a lesão se mostrava em cicatrização (Figura 1D). O paciente completou 13 meses de uso de itraconazol e mudou-se para outra cidade, perdendo-se o seguimento.

Caso 2: Paciente do sexo masculino, de 15 anos, estudante, residente em Belford Roxo-RJ. Refere ressurgimento de nódulos com crostas sobre os terceiro, quarto e quinto quirodáctilos e dorso da mão esquerda sobre lesões cicatriciais de esporotricose (Figura 2A) após um mês do término do tratamento com IK, seguido de itraconazol 200mg/dia durante seis meses. Foi reintroduzido o itraconazol e foram realizadas três sessões de criocirurgia com NL, com intervalos de um mês entre elas, utilizando-se o equipamento Cry-Ac®, técnica spray intermitente, ponteira B, padrão sólido central, com dois ciclos de congelamento e descongelamento, com intervalo de quatro minutos entre os ciclos (Figura 2B). Foi também recomendado o uso de itraconazol durante um mês a mais, completando dez meses. Após dois meses do procedimento, o paciente apresentou cicatrizes (Figura 2C) e, em três anos de acompanhamento, permanece sem lesão ativa da doença.

Caso 3: Para uma paciente do sexo feminino, de 59 anos, empregada doméstica, residente no Rio de Janeiro-RJ, foi indicada a criocirurgia após um ano e sete meses de uso de itraconazol (100mg/dia durante sete meses, e 200mg/dia nos demais) para tratamento de lesão ulcerada resistente, sem sinais de cicatrização (Figura 3A). Foi realizada uma sessão de criocirurgia com aparelho Nitrospray® (Criotécnica, Campinas, Brasil) sonda de contato de 2cm de diâmetro, dois ciclos de congelamento e descongelamento, com intervalo de quatro minutos entre os ciclos, após o descongelamento total (Figura 3B). A lesão regrediu (Figura 4A) e após três meses apresenta cicatrizes (Figura 4B).

 

DISCUSSÃO

A esporotricose é micose subcutânea de distribuição universal, e o número de casos vem aumentando.1 Desde 1997 o Estado do Rio de Janeiro vive uma epidemia/endemia zoonótica com mais de 5.000 casos de humanos diagnosticados no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, centro de referência na cidade,2 sendo doença de notificação compulsória.

O tratamento de eleição da esporotricose é o itraconazol, mas outras substâncias também podem ser utilizadas: a solução saturada de IK, terbinafina, fluconazol, cetoconazol e anfotericina B.1,3 O tempo médio de tratamento é de três meses, e o critério de cura é clínico, correspondendo à cicatrização das lesões e ao desaparecimento do eritema e das crostas.3 O Sporothrix spp. é sensível à temperatura, tanto ao calor excessivo quanto ao frio. Sendo assim, a criocirurgia com NL pode ser utilizada como adjuvante ao tratamento tradicional.

A criocirurgia é efetiva no tratamento de diversas doenças cutâneas benignas, pré-malignas e malignas. Pode ser usada como tratamento único ou como adjuvante aos tratamentos cirúrgicos convencionais ou medicamentosos, como nas doenças infecciosas fúngicas.4-6 Essa modalidade de tratamento se baseia na destruição seletiva de células ou tecidos pelo congelamento, a qual depende da temperatura mínima atingida durante a injúria criogênica. Para que se obtenha uma injúria grave, o congelamento é feito por período mais longo, atingindo -20ºC a -30ºC, resultando em necrose. As técnicas de aplicação da criocirurgia dependem de tipo da lesão, forma, tamanho e localização, além da experiência do criocirurgião.4,6 Na esporotricose podem ser utilizadas técnicas do spray de modo intermitente, no padrão sólido central, com pontas A ou B (Cry-Ac®) e pontas 8, 9 e 10 (Nitrospray®); técnica do spray confinado utilizando cones abertos para aprofundar o congelamento sem causar danos laterais nas lesões arredondadas e a técnica do contato sólido que utiliza pontas sólidas (sondas) previamente congeladas de diâmetros variáveis, em áreas planas e em lesões ulceradas. A margem lateral oscila de 3mm a 4mm, e o tempo de congelamento é variável, dependendo do tamanho da lesão, sendo recomentados dois ciclos de congelamento e descongelamento (na proporção mínima de duração de 1:3), com intervalo de quatro minutos entre os ciclos e sessões a cada 30 dias ou com lesões cicatrizadas.

Ferreira et al. relataram nove pacientes com esporotricose linfocutânea e localizada que foram tratados com NL com dois ciclos de 15 segundos e média de 2,2 sessões com intervalo mensal entre elas após terem realizado tratamento prévio com IK, itraconazol ou itraconazol associado à terbinafina (Tabela 1).7 Moraes et al. citaram um caso de resistência ao uso de IK e itraconazol e após a criocirurgia houve regressão dos sinais de atividade da doença e boa evolução cicatricial (Tabela 1).4 Bargman também relatou três casos da forma fixa que tiveram resolução (Tabela 1).8 Neste artigo, são descritos três pacientes que mantinham lesões ativas de esporotricose após tratamento prévio com IK e/ou itraconazol ao longo de mais de seis meses e obtiveram sucesso terapêutico após o uso da criocirurgia (Tabela 1).

A associação da criocirurgia com itraconazol na terapia da esporotricose felina torna o tratamento mais efetivo e mais rápido. Souza et al. encontraram cura clínica em 84,6% dos gatos tratados com a terapia combinada numa duração média de 32 semanas, reduzindo o custo e os efeitos colaterais aos antifúngicos.9

Ressalta-se que os acessórios, como sondas e pontas abertas, utilizados na criocirurgia, devem ser esterilizados em autoclaves ou por óxido de etileno.

Além disso, a esporotricose, por ser zoonose com maior número de casos provocados por animais contaminados, deve ser precocemente diagnosticada e tratada para interromper a cadeia epidemiológica.

 

CONCLUSÃO

As indicações e os resultados do tratamento da esporotricose com criocirurgia aguardam ainda melhor definição. A escassa literatura a respeito e a observação dos três casos relatados permitiram sugerir sua utilidade nos casos não resolvidos com o itraconazol e/ou IK por período superior a seis meses nas formas linfocutânea ou localizada/fixa da doença.

 

PARTICIPAÇÃO NO ARTIGO

Pedro Secchin

Concepção, elaboração e planejamento do estudo.

Giselle Ribeiro Pereira Seabra

Avaliação de cada caso clínico para a realização da criocirurgia, definindo os parâmetros a serem utilizados (localização da lesão, ponteiras a serem utilizadas, controle do tempo de congelamento e descongelamento, margem de segurança), acompanhamento do paciente, avaliação se há necessidade ou não de realização novas sessões.

Cleide Eiko Ishida

Participação efetiva na orientação da pesquisa, elaboração e revisão final do texto

David Rubem Azulay

Participação na orientação da pesquisa e revisão final do texto

Nurimar Conceição Fernandes

Participação na orientação da pesquisa e revisão final do texto

 

Referências

1. Carrasco-Zuber JE, Navarrete-Dechent C, Bonifaz A, Fich F, Vial-Letelier V, Berroeta-Mauriziano D. Cutaneous Involvement in the Deep Mycoses: A Literature Review. Part I-Subcutaneous Mycoses. Actas Dermosifiliogr. 2016;107(10):806-15.

2. Gutierrez-Galhardo MC, Freitas DFS, Valle ACF, Almeida-Paes R, Oliveira MME, Zancopé-Oliveira RM. Epidemiological Aspects of Sporotrichosis Epidemic in Brazil. Curr Fungal Infect Rep. 2015;9(4):238-45.

3. Gerência de Doenças Transmitidas por Vetores e Zoonoses. Vigilância da esporotricose: orientações sobre vigilância da esporotricose no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gerência de Doenças Transmitidas por Vetores e Zoonoses (GDTVZ); 23 dez. 2014. Informe técnico 005/2014. Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro.

4. Moraes AM, Velho PENF, Magalhães RF. Criocirurgia com nitrogênio líquido e as dermatoses infecciosas. An Bras Dermatol. 2008;83(4):285-98.

5. Reis CMS, Ishida CE. Criocirurgia. Outras indicações e Condições Especiais. In: Gadelha AR, Costa IMC, editors. Cirurgia Dermatológica em Consultório. 2ª ed. São Paulo: Editora Atheneu; 2009. p. 495-517.

6. Ishida CE. Criocirurgia. In: Kadunc B, Palermo E, Addor F, Metsavaht L, Rabello L, Mattos R, et al, editors. Tratado de Cirurgia Dermatológica, Cosmiatria e Laser da Sociedade Brasileira de Dermatologia. Rio de Janeiro: Elsevier; 2013. p. 541-557.

7. Ferreira CP, Galhardo MC, Valle AC. Cryosurgery as adjuvant therapy in cutaneous sporotrichosis. Braz J Infect Dis. 2011;15(2):181-3.

8. Bargman H. Successful treatment of cutaneous sporotrichosis with liquid nitrogen: report of three cases. Mycoses. 1995;38(7-8):285-7.

9. de Souza CP, Lucas R, Ramadinha RH, Pires TB. Cryosurgery in association with itraconazole for the treatment of feline sporotrichosis. J Feline Med Surg. 2016;18(2):137-43.

 

Trabalho realizado no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.


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