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Relato de casos

Evolução de caso de Lipoidoproteinose em 25 anos de seguimento

Guilherme Bueno de Oliveira1; Natália Cristina Pires Rossi2; Carlos Roberto Antônio3; João Roberto Antônio4

Data de recebimento: 03/10/2012
Data de aprovação: 21/11/2013
Suporte Financeiro: Nenhum
Conflito de Interesses: Nenhum

Abstract

A Lipoidoproteinose é uma genodermatose autossômica recessiva rara, multissistêmica, caracterizada pelo depósito e acúmulo progressivo de uma substância hialina amorfa na pele e mucosas. Este trabalho relata o acompanhamento de 25 anos de uma paciente portadora da doença e a combinação de tratamentos clínicos e cirúrgicos, como proteção solar, vitamina E oral, ácido retinóico 0,01%, ácido azelaico 20%, exérese de lesões verrucosas, dermoabrasão com lixa d'água e esfoliações químicas com solução de Jessner e ácido tricloroacético a 35%.

Keywords: PROTEINOSE LIPÓIDE DE URBACH E WIETHE; PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS AMBULATÓRIOS; PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS MENORES; EVOLUÇÃO CLÍNICA.


INTRODUÇÃO

A Lipoidoproteinose (LP), também conhecida como Hialinose cutânea das mucosas, é uma genodermatose autossômica recessiva rara, multissistêmica, com alta incidência de consangüinidade, caracterizada pelo depósito e acúmulo progressivo de uma substância hialina amorfa eosinofílica, de constituição glicolipoidoprotéica, ácido periódico e reagente de Schiff (PAS) positiva na pele, trato aerodigestivo superior e envolvimento visceral.1,2 A doença é atribuída a mutações com perda de função da proteína 1 da matriz extracelular (ECM1) de 85 kDa, localizada no cromossomo 1q21. A função desta proteína ainda é desconhecida, embora tenha importante papel na fisiologia e homeostase local.3,4

Afeta ambos os sexos igualmente, com início na infância, sendo caracterizada por lesões cicatriciais após pequenos traumatismos, e rouquidão. As lesões da pele são compostas por pápulas amareladas e com cor de marfim, que podem se agrupar em placas, situando-se principalmente em face, pescoço e áreas de atrito. Nestas ainda podem aparecer sob a forma de lesões nodulares.1,3,4 A mucosa faríngea e oral apresenta-se com infiltração difusa e coloração branco amarelada, língua endurecida, culminando com disfonia e rouquidão desde o nascimento, sendo frequentemente a primeira manifestação da doença. Nos casos mais graves, a infiltração difusa da faringe e laringe pode causar desconforto respiratório, às vezes necessitando de traqueostomia. Pode ocorrer infiltração da mucosa genital.3-5

As lesões sistêmico-viscerais caracterizam-se por anormalidades ortodônticas, calcificações intracranianas, ataques de epilepsia, distúrbios pigmentares, diabetes mellitus e porfiria. A LP possui evolução insidiosa, crônica e benigna, não apresentando ainda tratamento efetivo.6-10

O objetivo deste trabalho é relatar o seguimento de uma paciente do sexo feminino durante vinte e cinco anos de evolução, evidenciando a importância da cirurgia dermatológica para melhorar a qualidade de vida destes pacientes.

 

RELATO DO CASO

Paciente de 28 anos, sexo feminino, branca, natural do estado de São Paulo, com história de consangüinidade entre os pais, que são primos.

Desde os dois anos de idade apresenta disfonia e rouquidão, associadas a lesões de pele na face e membros, que evoluíam através de bolhas, que aumentavam de tamanho e rompiam, deixando como seqüela crostas e máculas eritematosas e hipocrômicas. As lesões surgiam em surtos, a cada seis meses, com piora após traumas. Aos seis anos de idade, houve aparecimento de úlceras e lesões nodulares nos cotovelos e antebraços. Ao exame dermatológico apresentava lesões na face, algumas crostosas e outras cicatriciais hipocrômicas e hipercrômicas deprimidas, com aspecto variceliforme e dimensões variando de puntiformes a lenticulares. (Figura 1) Na região infraorbitária encontravam-se pequenas pápulas amareladas. Os cotovelos e antebraços apresentavam nódulos, lesões exulceradas e áreas de espessamento, bilateralmente. O estudo histopatológico aos seis anos de idade evidenciou epiderme com hiperceratose e papilomatose; derme papilar com acúmulo de substância róseo fibrilar em torno de vasos e glândulas sudoríparas, e atrofia. Esta substância é PAS positivo e diástase resistente. (Figura 2)

O exame otorrinolaringológico aos seis anos mostrou superfície lingual infiltrada, irregular e rígida, com placas amareladas, (Figura 1) septos nasais com cornetos hipertrofiados, faringe e epiglote espessada e cordas vocais com sensibilidade normal e espessamento presente. A tomografia computadorizada de crânio apresentou duas imagens com densidades cálcicas lateralmente aos seios cavernosos, de forma simétrica, com projeção cranial. A paciente foi encaminhada ao serviço de Neurologia para avaliação e terapêutica das crises de epilepsia..

As lesões da pele foram abordadas com tratamento clínico e procedimentos cirúrgicos. (Quadro 1) Clinicamente, houve a introdução de proteção solar com filtros químicos com FPS entre 30 e 50, vitamina E oral, creme tópico fibrinolítico até três vezes ao dia na presença de lesões crostosas, ácido retinóico 0,01% em creme à noite e ácido azelaico em creme a 20% pela manhã antes do protetor solar. Cirurgicamente foram realizadas eletrocauterização e exérese de lesões nodulares e verrucosas nas pálpebras superior e inferior e cotovelos, (Figura 3) dermoabrasão com lixa d'água de número 180 precedida de anestesia local com lidocaína a 2% na região frontal, peeling químico médio com solução de Jessner e ácido tricloroacético a 35% na face toda, com melhora do espessamento cutâneo e coloração amarelada da pele. (Figura 4)

Hoje, aos 28 anos de idade, evidenciam-se apenas lesões cicatriciais rasas mantendo discretamente o aspecto variceliforme, entremeadas com pele de coloração normal na região médio-facial e na região frontal. Na região infraorbitária houve o desaparecimento quase completo das pequenas pápulas amareladas. (Figura 5) Há três anos, houve surgimento de alopecia difusa não cicatricial, disfagia e dispaurenia, mantendo-se estável o quadro dermatológico, sem aparecimento de novas lesões. A paciente, entretanto, apresenta refratariedade ao tratamento das crises convulsivas e persistência da disfonia, rouquidão e infiltração e endurecimento da superfície lingual.

 

DISCUSSÃO

A LP é uma doença autossômica recessiva extremamente rara, comumente associada à consangüinidade, havendo na literatura aproximadamente 300 casos descritos, sendo que sua maior prevalência se encontra na Suécia e África do Sul.10

No caso relatado notamos o quadro cutâneo da paciente com pele infiltrada de coloração amarelada, semelhante a marfim, na face, região cervical, mãos, joelhos e cotovelos. As lesões da pele se manifestaram em vários estágios evolutivos: papulosas, nodulares, ceratósicas e verrucosas, levando à formação de cicatrizes variceliformes. Estas possuem como fatores de piora o trauma mecânico e a exposição solar. As alterações na pele das pálpebras é denominada "Blefarose Moniliforme".10 O quadro mucoso caracterizou-se por disfonia e rouquidão desde o nascimento, placas infiltradas amarelo-esbranquiçadas nos lábios, língua, faringe e língua enrijecida com mobilidade prejudicada. As manifestações sistêmicas que podem estar presentes e que foram observadas na paciente foram alopecia, hipohidrose, anormalidades ungueais e dentárias, calcificações intracranianas e epilepsia, essas tratadas pela neurologia.1,5

Geralmente a LP possui evolução crônica e benigna, necessitando de acompanhamento ambulatorial para suporte durante toda a vida, pois não existe tratamento efetivo conhecido.2,10 Podem ser utilizados como opção terapêutica clinica os retinóides orais ou D-penicilamina8-10 e terapêutica cirúrgica que consiste em dermoabrasão, esfoliações químicas ou laser de CO2 de 10.600nm.6,7 O uso da dermoabrasão cirúrgica com lixa d'água 180 e das esfoliações químicas com solução de Jessner e Ácido Tricloroacético a 35%, apresentou resultados semelhantes ao da literatura pesquisada. O uso do retinóide tópico durante todo o período permite regeneração celular, esfoliação constante e síntese de novo colágeno, trazendo benefícios no resultado cosmético final.

Neste relato, os tratamentos - clínico e cirúrgico - empregados na paciente durante os 25 anos de acompanhamento, apresentaram resultados satisfatórios para o controle dos sinais dermatológicos como das lesões cicatriciais em face, da região infraorbitária, das pálpebras superiores e inferiores, com melhora significativa da aparência e sensivelmente da sua qualidade de vida. Como as lesões não apresentam tendência à involução natural, a opção pela terapêutica cirúrgica é mandatória para eliminar as lesões papulares, nodulares e vegetantes, assim como o uso da dermoabrasão e esfoliações químicas para melhora do espessamento cutâneo e coloração amarelada.

Este trabalho teve como objetivo salientar que, mesmo com a inexistência de um tratamento definitivo e efetivo relatado na literatura consultada, os procedimentos clínicos e cirúrgicos devem ser encorajados na abordagem dos pacientes portadores de LP. Como o quadro clínico se inicia na infância ou adolescência precoce, os procedimentos devem se efetuados progressivamente, com o uso do arsenal terapêutico disponível conforme as devidas indicações, visando melhorar os sinais dermatológicos.6-10 Desse modo podemos impedir a origem de certos estigmas, que afetam a qualidade de vida dos pacientes.

 

Referências

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3. Horev L, Wollina DU, Potikha T, Hafner A, Ingber A, Liu L, et al. Lipoid proteinosis: identification of two novel mutations in the human ECM-1 gene and lack of genotype-phenotype correlation. Acta Derm Venereol. 2009;89(5):528-9.

4. Fujimoto N, Terlizzi J, Aho S, Brittingham R, Fertala A, Oyama N, et al. Extracellular matrix protein 1 inhibits the activity of matrix metalloproteinase 9 through high-affinity protein/protein interactions. Exp Dermatol. 2006;15(4):300-7.

5. Kroukamp G, Lehmann K. Treatment of laryngeal lipoid proteinosis using CO2 laser. S Afr Med J. 2007;97(2):90, 92.

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7. Toosi S, Ehsani AH. Treatment of lipoid proteinosis with acitretin: a case report. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2009;23(4):482-3.

8. Gruber F, Manestar D, Stasic A, Grgurevic Z. Treatment of lipoid proteinosis with etretinate. Acta Derm Venereol. 1996;76(2):154-5.

9. Kaya TI, Kokturk A, Tursen U, Ikizoglu G, Polat A. D-penicillamine treatment for lipoid proteinosis. Pediatr Dermatol. 2002;19(4):359-62.

10. Lima LR, Mulinari-Brenner FA, Manfrinato LC. Lipoidoproteinose - relato de dois casos. An Bras Dermatol. 2003;78(6):723-7.

 

Trabalho realizado na Faculdade de Medicina Estadual de São José do Rio Preto (FAMERP) - São Paulo (SP), Brasil.


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