1636
Views
Open Access Peer-Reviewed
Artigo de investigação

Ensaio randomizado, duplo-cego e controlado de anestesia tópica induzida por iontoforese de lidocaína

Juliano Vilaverde Schmitt1, Hélio Amante Miot1

Recebido em 20/06/2009.
Aprovado em 10/09/2009.
Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Abstract

Introdução: A infiltração por agulha de anestésico local é dolorosa, portanto, o anestésico tópico constitui uma alternativa confortável, sendo, porém, difícil a administração transcutânea de fármacos polares. Iontoforese é uma técnica não invasiva que utiliza corrente elétrica para liberação de fármacos carregados eletricamente através de membranas biológicas. Objetivo: Avaliar a anestesia induzida por iontoforese de lidocaína para um estímulo doloroso padronizado. Material e métodos: Ensaio controlado, randomizado e duplo-cego envolvendo dez voluntários sob efeito anestésico da aplicação tópica de gel de lidocaína 2% e noradrenalina 1:50.000 com ou sem iontoforese de 1,85 miliamperes por 13 minutos. A sensibilidade dolorosa foi avaliada pela picada de uma agulha 21G na face posterior dos braços, usando-se uma escala visual numérica. Resultados: A idade média dos pacientes foi 50,8 ± 11,4 anos. O grupo de pacientes era composto por nove mulheres e um homem. Todos já haviam recebido anestesia infi ltrativa anteriormente. A iontoforese foi bem tolerada pelos voluntários. As medianas dos escores de dor foram de 0 e 3 para o braço que recebeu a iontoforese e o que não recebeu, respectivamente (p < 0,01). Conclusão: O efeito anestésico na região submetida à iontoforese sugere um método efi ciente e confortável para promover anestesia local, contribuindo para a abordagem cirúrgica de pacientes pediátricos, hiperálgicos, ou com pânico de agulhas.

Keywords: ANESTESIA, LIDOCAÍNA, PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS AMBULATÓRIOS, IONTOFORESE


INTRODUÇÃO

A aplicação de anestésico local é quase sempre dolorosa, sendo o anestésico tópico uma opção indolor. EMLA (eutectic mixture of local anesthetics) é o anestésico tópico mais bem estudado e efi caz no alívio da dor em procedimentos superfi ciais.1-7

Infelizmente, EMLA deve ser aplicado no mínimo uma hora antes para causar anestesia efetiva.8,9 Isso ocorre porque a administração cutânea de fármacos que apresentam carga, como os anestésicos locais, é particularmente difícil.10

Em condições normais, a penetração transdérmica de fármacos se restringe a poucas moléculas, que devem ser potentes, pequenas e ligeiramente lipofílicas.

A iontoforese é uma técnica não-invasiva, baseada na aplicação de uma corrente elétrica de baixa intensidade para facilitar a liberação de uma variedade de fármacos, carregados ou não, através de membranas biológicas (Figura 1).11

O presente estudo teve por objetivo comparar o efeito anestésico da aplicação tópica de gel de lidocaína com e sem a adição de uma corrente elétrica controlada.

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi desenhado respeitando as premissas de um estudo controlado, duplo-cego e randomizado, envolvendo dez pacientes de ambos os sexos, elegíveis entre os pacientes encaminhados para a realização de procedimentos cirúrgicos ambulatoriais na Fundação Pró-Hansen, situada em Curitiba/ PR, a qual atende pacientes de dermatologia geral e hansenologia provenientes da rede pública.

Foram excluídos da amostra os pacientes que utilizavam marca-passo, referiram alergia a qualquer um dos componentes do gel utilizado ou apresentavam alterações de sensibilidade ou dermatoses na região posterior dos braços (Figura 2).

A corrente elétrica foi aplicada através de equipamento não comercial desenvolvido para este fim, o qual produz corrente elétrica contínua controlada de aproximadamente 1,85 mA (Figura 3).

Os eletrodos foram preenchidos com gel hidrofílico formulado através da adição de 0,75% de carboximetilcelulose a uma solução de lidocaína 2% e noradrenalina 1:50.000 e fixados na parte posterior dos braços. Um braço recebeu o gel com a corrente elétrica e outro apenas o gel. Houve randomização, a partir de software gerador de números aleatórios, dos braços que receberiam a corrente elétrica.

Para análise estatística dos escores de dor, utilizou-se o teste não paramétrico de Wilcoxon, sendo considerado signi- ficativo P < 0,05.

Os participantes foram submetidos a estímulo doloroso aplicado por pesquisador cego, através de uma picada com agulha 21G, após a realização do procedimento acima. Logo após, foram questionados sobre a intensidade da dor, utilizando-se a escala visual numérica (EVN), validada internacionalmente, que varia de 0 (sem dor) a 10 (pior dor imaginável).12

RESULTADOS

A idade média do grupo de pacientes, composto por nove mulheres e um homem, foi 50,8 ± 11,4 anos. Todos já haviam recebido anestesia infiltrativa alguma vez.

As medianas dos escores de dor foram de 0 e 3 para o braço que recebeu a corrente elétrica e o que não recebeu, respectivamente (Gráfico 1). A diferença entre os escores foi considerada significativa (P < 0,01 – Wilcoxon).

Metade dos pacientes relatou ardor leve, enquanto 20% relataram prurido leve, ambos momentâneos. Mesmo assim, questionados quanto à comodidade do procedimento, 40% dos pacientes consideraram pouco incômodo e 60% nada incômodo.

Não foram evidenciadas alterações cutâneas decorrentes do processo.

DISCUSSÃO

A aplicação de uma corrente elétrica fraca para transferir substâncias carregadas através de membranas biológicas, ou seja, a iontoforese, não é uma técnica nova. O procedimento foi primeiramente descrito por Veratti em 1748 e vem sendo modificado ao longo dos anos, de acordo com as necessidades e a capacidade tecnológica.13

A iontoforese de lidocaína facilita o transporte destas moléculas para dentro da pele sob a influência de uma corrente elétrica e pode promover a anestesia tópica da pele intacta em cinco a quinze minutos. Esta técnica se mostrou efetiva na redução da dor associada à canulação venosa, curetagem, biópsia por shaving ou punch em crianças e adultos, e superior ao EMLA em um estudo comparativo, porém não em outro.14-16 Da mesma forma, os níveis séricos da lidocaína após o procedimento não se mostraram signi- ficativos, evidenciando o transporte local do fármaco.17

Verificou-se ainda que a associação de adrenalina na concentração de 1:160.000, ou mais, com lidocaína a 2% aumentou a eficácia anestésica da iontoforese.18

Em 2007, um adesivo com lidocaína e adrenalina para uso com equipamento de iontoforese foi liberado pelo Food and Drug Administration (FDA) nos EUA para tratamento local de dor.19

O presente estudo demonstrou que o processo de iontoforese foi bem tolerado e produziu anestesia superficial efetiva em um período de tempo relativamente curto se comparado ao tempo necessário para efeito de outros cremes anestésicos dermatológicos disponíveis no nosso meio. Alguns pacientes referiram leve ardor ou prurido no início do processo, que pode ser controlado com a redução da corrente elétrica aplicada.

A principal limitação do nosso estudo pode se relacionar à amostra reduzida, porém, como a diferença de escores teve grande magnitude, com alta significância estatística, considerase satisfatória para o objetivo deste estudo.

Em vista da eficácia anestésica demonstrada pelo estudo, realizamos duas biópsias por punch seguidas de sutura, utilizando apenas anestesia por iontoforese de lidocaína. A primeira paciente realizou biópsia no antebraço direito, e a segunda, na perna esquerda, sendo que ambas não necessitaram de complementação com anestesia infiltrativa.

Apesar de não ser uma técnica inédita, a aplicação de anestesia tópica por iontoforese para a cirurgia dermatológica não é muito difundida no nosso meio e não encontramos estudos semelhantes na literatura nacional indexada.

O efeito anestésico na região submetida à iontoforese sugere um método eficiente, seguro, bem tolerado e confortável para promover anestesia local não-invasiva, contribuindo para a abordagem cirúrgica de pacientes pediátricos, hiperálgicos, ou com pânico de agulhas.

A técnica da iontoforese pode ser promissora também na liberação de outras medicações de interesse dermatológico como: toxina botulínica, corticosteroides, vitamina C e clareadores no tratamento do melasma ou antifúngicos no tratamento de onicomicoses.19-22

Ensaios controlados posteriores devem comparar a eficiência da anestesia tópica induzida por iontoforese com as formas convencionais infiltrativa, tópica, crioanestésica e outras modalidades como a sonoforese, induzida por ultrassom.23 Novos estudos devem ser conduzidos com amostragens mais numerosas, estrati- ficadas por gênero, idade, faixa etária, topografia e indicação dermatológica, assim como diferentes regimes de iontoforese quanto a intensidade da corrente, tempo de aplicação, concentração e veículo de diferentes fármacos anestésicos para compreender as potenciais indicações da anestesia tópica induzida por iontoforese em cirurgia dermatológica.

CONCLUSÃO

Evidenciou-se o efeito anestésico da aplicação tópica de gel de lidocaína com adrenalina induzida por iontoforese.

Referências

1 . Huang W, Vidimos A. Topical anesthetics in dermatology. J Am Acad Dermatol 2000;43:286-298

2 . Juhlin L, Evers H, Brober F. A lidocaine-prilocaine cream for superficial skin surgery and painful lesions. Acta Derm Venereol 1980;60:544-546

3 . Rosedahl I, Edmar B, Gisslen H, Nordin P, Lillieborg S. Curettage of molluscum contagiosum in children: analgesia by topical application of lidocaine/prilocaine cream (EMLA). Acta Derm Venereol 1988;68:149-153

4 . Hjorth N, Harring M, Hahn A. Epilation of upper lip hirsutism with a eutectic mixture of lidocaine and prilocaine used as a topical anesthetic. J Am Acad Dermatol 1991;25:809-811

5 . Ashinoff R, Geronemus RG. Effect of the topical anesthetic EMLA on the efficacy of pulsed dye laser treatment of port wine stains. J Dermatol Surg Oncol 1990;16:1008-1011.

6 . Tan OT, Stafford TJ. EMLA for the treatment of portwine stains in children. Lasers Surg Med 1992;12:543-548

7 . Phahonthep R, Sindhuphak W, Sriprajittichai P. Lidocaine iontophoresis versus EMLA cream for CO2 laser treatment in seborrheic keratosis. J Med Assoc Thai 2004; 87:S15-S18

8 . Koren G. Use of eutectic mixture of local anesthetics in young children for procedure related pain. J Pediatr 1993;122:S30-S35

9 . Lahteenmaki T, Lillieborg S, Ohlsen L, Olenmius M, Stromebeck JO. Topical analgesia for the cutting of splitskin grafts: a multicenter comparison of two doses of a lidocaine/prilocaine cream. Plast Reconstr Surg 1988;82:458-462

10 . Kanebako M, Inagi T, Takayama K. Evaluation of skin barrier function using direct current III: effects of electrode distance, boundary length and shape. Biol. Pharm. Bull 2003;26:518-522

11 . Singh J, Gross M, Sage B, Davis HT, Maibach HI. Effect of saline iontophoresis on skin barrier function and cutaneous irritation in four ethnic groups. Food Chem. Toxicol 2000;38:717-726

12 . Fauconnier A, Dallongeville E, Huchon C, Ville Y, Falissard B. Measurement of acute pelvic pain intensity in gynecology: a comparison of five methods. Obstet Gynecol 2009;113:260-269

13 . Greenbaum SS. Iontophoresis as a tool for anesthesia in dermatologic surgery: an overview. Dermatol. Surg 2001;12:1027-1030

14 . Zempsky WT, Parkinson TM. Lidocaine Iontophoresis for Topical Anesthesia Before Dermatologic Procedures in Children: A Randomized Controlled Trial. Pediatr Dermatol 2003;20:364-368

15 . Zempsky WT, Sullivan J, Paulson DM, Hoath SB. Evaluation of a low-dose lidocaine iontophoresis system for topical anesthesia in adults and children: a randomized, controlled trial. Clin Ther 2004;26:1110-1119

16 . Moppett IK, Szypula K, Yeoman PM. Comparison of EMLA and lidocaine iontophoresis for cannulation analgesia. Eur J Anaesthesiol 2004;21:210-213

17 . Kearns GL, Heacook J, Daly SJ, Singh H, Alander SW, Qu S. Percutaneous lidocaine administration via a new iontophoresis system in children: tolerability and absence of systemic bioavailability. Pediatrics 2003;112:578-582

18 . Wakita R, Oono Y, Oogami S, Hayashi S, Umino M. The Relation between Epinephrine Concentration and the Anesthetic Effect of Lidocaine Iontophoresis. Pain Pract 2009;9:115-121

19 . Dixit N, Bali V, Baboota S, Ahuja A, Ali J. Iontophoresis – an approach for controlled drug delivery: a review. Curr. Drug Delivery 2007;4:1-10

20 . Davarian S, Kalantari KK, Rezasoltani A, Rahimi A. Effect and persistency of botulinum toxin iontophoresis in the treatment of palmar hyperhidrosis. Australas J Dermatol 2008;49:75-79

21 . Huh CH, Seo KI, Park JY, Lim JG, Eun HC, Park KC. A randomized, double-blind, placebo-controlled trial of vitamin C iontophoresis in melasma. Dermatology 2003; 206:316-320

22 . Nair AB, Vaka SR, Sammeta SM et al. Trans-ungual iontophoretic delivery of terbinafine. J Pharm Sci 2009;98:1788-1796

23 . Hikima T, Ohsumi S, Shirouzu K, Tojo K. Mechanisms of synergistic skin penetration by sonophoresis and iontophoresis. Biol Pharm Bull 2009;32:905-909


Licença Creative Commons All content the journal, except where identified, is under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International license - ISSN-e 1984-8773