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Artigo Original

Avaliação dos aspectos psicológicos, psiquiátricos e comportamentais de pacientes com celulite: estudo-piloto

Doris Hexsel 1, Carolina Siega1, Juliana Schilling-Souza1, Amanda Stapenhorst1, Ticiana Costa Rodrigues1, Cristiano Brum1

Data de recebimento: 16/04/2012
Data de aprovação: 29/05/2012

Trabalho realizado no Centro Brasileiro de
Estudos em Dermatologia (CBED) – Porto
Alegre (RS), Brasil.
Suporte Financeiro: Estudo financiado pelo
Centro Brasileiro de Estudos em
Dermatologia (CBED) – Porto Alegre (RS),
Brasil.

Conflito de Interesses: Nenhum

Abstract

Introdução: Cerca de 50% da população refere algum tipo de insatisfação com a aparência. Os hábitos comportamentais que motivam os pacientes a procurar tratamentos cosméticos ainda não estão completamente entendidos.
Objetivos: Avaliar os aspectos comportamentais, psicológicos e psiquiátricos de pacientes com celulite.
Métodos: Estudo transversal observacional descritivo. Na primeira etapa, 46 voluntárias responderam a questionário autoaplicável e, na segunda etapa, um psiquiatra aplicou o questionário Mini.
Resultados: A maioria das entrevistadas referiu o início das lesões de celulite após o início da puberdade. Os ambientes que mais causaram desconforto quanto à celulite foram praia (87%) e piscina (67,4%). Quase metade das pacientes referiu já ter recebido algum tipo de comentário constrangedor em razão da sua celulite e 78,3% delas sentem-se pressionadas a procurar tratamentos. Distúrbios de alimentação apresentados incluíram uso de drogas, ingestão compulsiva de alimentos, culpa após as refeições e indução de vômitos. O transtorno emocional específico mais encontrado foi ansiedade generalizada.
Conclusões: Pacientes com celulite podem apresentar desconforto emocional e sentimentos negativos em situações comuns do dia a dia. Alterações em hábitos comportamentais específicos e presença de comorbidades psicológicas ou psiquiátricas podem estar presentes em algumas pacientes.

Keywords: CELULITE, PELE, COMPORTAMENTO, QUESTIONÁRIOS


INTRODUÇÃO

Aproximadamente 50% da população refere algum tipo de insatisfação com a sua aparência. Uma parte desse grupo procu- ra algum tipo de procedimento estético com o objetivo de cor- rigir traços considerados indesejáveis, buscando melhorar a autoestima, autoconfiança e, consequentemente, a qualidade de vida. 1

A demanda de tratamentos cosméticos minimamente inva- sivos vem crescendo a cada ano. Nos Estados Unidos, observou- se aumento de 77% no período entre 2000 e 2010. 2 No Brasil, a busca de tratamentos cosméticos sempre foi grande e vem crescendo consideravelmente. Nesse sentido, torna-se necessário compreender os aspectos psicológicos que motivam as pessoas a procurar tais tratamentos, suas expectativas e quais os benefícios psicológicos esperados após sua realização. 3

O termo celulite é conhecido e usado para descrever a superfície da pele com aspecto em casca de laranja ou acolchoa- do, sendo prevalente em mulheres de todas as raças, especialmen- te em caucasianas. 4 Parece haver importante componente hor- monal na celulite, já que é rara em pacientes do sexo masculino, afeta mulheres mais frequentemente após a menarca, e é referida piora do problema com o uso de anticoncepcionais. Há três hipóteses etiológicas para a celulite: fatores inflamatórios, altera- ções vasculares e alterações dos septos do tecido conjuntivo. 4

A celulite tornou-se uma preocupação entre as mulheres que vivem em áreas tropicais, como o Brasil, uma vez que há maior exposição da superfície corporal. Consequentemente, a celulite pode conferir relevante impacto social e ser motivo de procura de tratamentos específicos. 5

Em nossa prática diária, a diferenciação entre as pessoas emocionalmente sadias que procuram melhorar sua aparência e aquelas que apresentam transtornos da percepção da autoima- gem pode ser bastante difícil. Tratando essa questão, o dermato- logista pode ser o primeiro profissional a ter contato com esse paciente. Ishigooka e colaboradores registraram que mais de 47,7% dos pacientes que consultam por procedimentos estéticos apresentam critérios positivos para o diagnóstico de transtornos mentais, 6 sendo os mais comuns o transtorno dismórfico corpo- ral e os transtornos de personalidade narcisista e histriônica. 7 Um recente estudo brasileiro apontou que pacientes cosméticos apresentaram maior prevalência de transtorno dismórfico cor- poral (14%) comparados aos pacientes do ambulatório de der- matologia geral (6,7%) e a controles sem doença ou queixas de pele (2%). 8

Há escassos estudos na literatura sobre os aspectos psicoló- gicos dos pacientes que procuram tratamento para celulite. Sabendo-se que o entendimento do contexto emocional de cada paciente auxiliará o dermatologista em sua avaliação, o objetivo deste estudo foi investigar aspectos psicológicos, comportamen- tais e a presença de sintomas psiquiátricos em mulheres que pro- curaram atendimento médico com queixa de celulite.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal observacional descritivo rea- lizado entre 2008 e 2011. Pacientes que procuraram o Centro Brasileiro de Estudos em Dermatologia (CBED) com queixa de celulite e/ou buscando alguma modalidade de tratamento para esse problema foram convidadas a participar. Inicialmente foi aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a todas as pacientes entrevistadas, tendo todas as incluídas consentido por escrito em participar do estudo. Esse protocolo foi aprova- do pelo Comitê de Ética do Hospital Moinhos de Vento de Porto Alegre (Parecer de aprovação 2008/115).

Os critérios de inclusão foram: mulheres com idade entre 18 e 45 anos apresentando queixa de celulite, independente do grau de gravidade; ensino fundamental completo e capacidade para entender o questionário; ausência de doenças sistêmicas graves e/ou dermatológicas graves que pudessem gerar sofri- mento psicológico. Seriam excluídas voluntárias que apresentas- sem grave deficit auditivo ou visual, bem como problemas de entendimento do idioma.

As voluntárias responderam inicialmente a questionário autoaplicável com 50 questões sobre as variáveis demográficas, antropométricas, estilo de vida e medicações em uso. Os aspec- tos psicológicos em relação à celulite, sintomas relacionados a transtornos alimentares, tempo e valores gastos com procedi- mentos cosméticos também foram estudados.

As voluntárias que consentiram em participar da segunda etapa do estudo foram então entrevistadas por médico psiquiatra (CB), que aplicou as questões-chave de cada transtorno psiquiá- trico contido no Mini International Neuropsychiatric Interview (Mini). Quando essa avaliação inicial fosse positiva para qualquer transtorno psiquiátrico, a voluntária seria reavaliada através da reutilização do Mini e, nesta nova etapa, foram feitas as pergun- tas pertinentes para os critérios diagnósticos do transtorno sus- peito, confirmando ou não o diagnóstico psiquiátrico.

Instrumentos de avaliação
O Mini é questionário padronizado breve (15-30 minu- tos), compatível com os critérios do DSM-III-R/IV e da CID- 10, que é destinado à utilização na prática clínica, na pesquisa, na atenção primária e em psiquiatria, podendo ser utilizado por clínicos após treinamento rápido (de uma a três horas). 9 Foi desenvolvido por pesquisadores do Hospital Pitié-Salpêtrière de Paris e da Universidade da Flórida10 e atualmente está sendo amplamente utilizado para a seleção de pacientes em ensaios multicêntricos psicofarmacológicos, em outros protocolos clí- nicos, em psiquiatria e em atenção primária, na Europa, EUA e também no Brasil. A tradução brasileira da versão mais atual (versão 5.0) do Mini DSM-IV já foi realizada e anteriormente validada. 10

Os resultados referentes à confiabilidade e à validade do Mini são globalmente satisfatórios. Comparado ao Cidi (Composite International Diagnostic Interview) e ao SCID-P (Structured Clinical Interview for DSMIII-R), o Mini mos- trou-se globalmente adequado para gerar diagnósticos. Para uma redução de 50% ou mais no tempo de avaliação, com relação aos questionários longos, a sensibilidade e a especificidade do Mini são consideradas bastante satisfatórias. 10

Análise estatística
Os dados foram descritos como média e desvio-padrão para as variáveis contínuas e como porcentagem para os dados categóricos. A análise estatística foi feita no programa SPSS 16.0 (Chicago, IL).

RESULTADOS

Neste estudo, foram incluídas 46 voluntárias. A tabela 1 descreve as características demográficas e clínicas dessas pacien- tes. A maioria constituiu-se de pacientes brancas, com ensino superior completo, com vínculo de trabalho e em uso de anti- concepcional oral. A maior parte referiu o início das lesões de celulite na puberdade. O índice de massa corporal (IMC) médio do grupo foi 23,5 ± 3,4kg/m2 (variação: 16-39kg/m2 ), sendo que apenas 23,9% (n=11) das pacientes apresentaram excesso de peso corporal (IMC>24,9kg/m2 ) e apenas duas pacientes foram consideradas obesas (IMC >29,9kg/m2 ).

Os ambientes que mais causaram desconforto nas pacien- tes entrevistadas quanto à celulite foram praia (87%), piscina (67,4%), academia (19,6%), banho (8,7%) e 4,3% delas referiram não apresentar desconforto. As situações/ambientes de lazer (praia, piscina e festas), cotidianas e mídia (revistas e televisão) foram citadas como responsáveis por situações de estresse/des- conforto em 76,1%, 39,1% e 8,7%, respectivamente.

Das voluntárias avaliadas, 84,8% costumam observar a pre- sença de celulite em outras mulheres; 28,3% relataram compa- rar-se às demais em relação à celulite; 69,6% acreditam ser observadas pelos homens em função da presença de celulite, e 41,3% referiram já ter recebido algum tipo de comentário cons- trangedor em razão de sua celulite. A maior parte das voluntá- rias (78,3%) sente-se constrangida por causa da celulite e se sente compelida a procurar tratamentos. A tabela 2 descreve a frequência de sentimentos referidos pelas pacientes quando se olham no espelho e observam sua celulite.

A ocorrência de ingestão compulsiva de alimentos, em pelo menos algum momento, foi relatada por 84,8% das voluntárias, e mais da metade (58,7%) sente culpa pela quantidade e quali- dade dos alimentos ingeridos após as refeições. Algumas volun- tárias mencionaram o hábito de induzir vômitos (10,9%) e de contabilizar calorias (17,4%), e 67,4% informaram já ter utiliza- do algum tipo de medicamentos para perder peso, com ou sem orientação médica. As voluntárias também relataram grande preocupação com a presença de gordura corporal (89,1%). A tabela 3 descreve os medicamentos já utilizados pelas pacientes para a perda de peso corporal, tendo sido a sibutramina a droga mais utilizada. A tabela 4 indica o tempo despendido, em horas semanais, e o gasto mensal com a celulite, o grau avaliado pela voluntária e a expectativa ao procurar tratamento. A tabela 5 mostra a frequência de uso de diferentes tipos de tratamentos para celulite.

Das pacientes avaliadas neste estudo, 43,5% já tinham rea- lizado algum tipo de tratamento cosmético também para outras condições, sendo que cerca de 9% tinham realizado aplicações de toxina botulínica, 15,2% algum tipo de peeling facial, 4,3% algum tipo de laser, 6,5% algum tipo de cirurgia plástica, e 21,7% relataram outros diferentes procedimentos.

Em relação aos diagnósticos psiquiátricos encontrados, cinco pacientes apresentaram transtorno de ansiedade generali- zada; uma, fobia específica; duas, compulsão alimentar; e uma, transtorno do deficit de atenção com hiperatividade. As demais pacientes não fecharam critérios para transtornos psiquiátricos reconhecidos.

DISCUSSÃO

Este estudo-piloto teve por objetivo avaliar as questões comportamentais e psicológicas em mulheres portadoras de celulite e que buscam tratamentos cosméticos que a atenuem, além de pesquisar diagnósticos psiquiátricos comórbidos. Os dados obtidos podem ser de grande auxílio em futuros estudos que visem estabelecer o perfil psicológico das pacientes que bus- cam tratamento para celulite e o entendimento dos sentimentos associados, contribuindo para sólida e empática relação médi- co/paciente.

Grande parte das mulheres que procuram tratamento para celulite sente-se incomodada com essa condição e pode desen- volver comportamentos mórbidos em função da presença de celulite e preocupação com a aparência. Chamam atenção os dados obtidos em relação à alimentação. A maioria (84,8%) das voluntárias, em algum momento, já ingeriu alimentos de forma compulsiva. Sentimentos negativos, como culpa, após a alimen- tação, mencionados por mais da metade (58,7%) das voluntárias, e grande apreensão em relação à quantidade de gordura corpo- ral foram observados e são fatores que podem estar relacionados ao uso indiscriminado de medicações anorexígenas e laxantes.

Neste estudo 78,3% das voluntárias relataram que se sen- tem constrangidas em relação à presença de celulite e compeli- das a buscar tratamento. Uma pequena parcela das pacientes (6,5%) se sente influenciada pelo parceiro a buscar o tratamen- to, enquanto 28,3% aponta a influência da mídia.

A preocupação com a aparência física está diretamente relacionada às atividades de lazer e do cotidiano, ocasionando atitudes de isolamento e baixa autoestima, bem como atuando negativamente sobre a qualidade de vida.

Estudo anterior, realizado por Hexsel e colaboradores, mostrou que as pacientes apresentam melhora na qualidade de vida e autoestima, após tratamentos de celulite. 11

Os autores deste estudo reconhecem algumas limitações suas e o fato de que os resultados devem ser interpretados levan- do-se isso em conta. O número de voluntárias foi pequeno, a amostra utilizada foi de conveniência, e todas as pacientes ava- liadas procuraram atendimento médico para tratamento de celu- lite, o que pode ser considerado um viés de seleção e fator res- ponsável pelo elevado desconforto encontrado entre as pacien- tes. Também pode ser considerado limitante a ausência de um grupo-controle, com outra queixa estética ou mesmo sem quei- xas de celulite e/ou outra queixa cosmética. Esses fatores, porém, não invalidam os resultados, uma vez que se trata de estudo inicial e piloto, que mostrou elevado grau de desconfor- to psíquico de pacientes com queixa de celulite. Em futuras pes- quisas, esses fatores poderão ser controlados, visando à obtenção de novos dados.

CONCLUSÕES

São frequentes os transtornos e o desconforto emocional relatados por pacientes com queixas de celulite, que se manifes- tam por sentimentos negativos e ocorrem em situações comuns do dia a dia.

O conhecimento e o entendimento da paciente com quei- xas cosméticas, seus sentimentos, hábitos, características psicoló- gicas e comportamentais, bem como de suas expectativas quan- to aos tratamentos, são de grande importância para o dermato- logista e podem garantir melhores resultados.

Referências

1 . Veale D. Psychologycal aspects of a cosmetic procedure. Psychiatry 2006; 5(3):93-5.

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