2023
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Relato de casos

Angiossarcoma primário em couro cabeludo e hanseníase virchowiana: associação incomum em paciente idosa

Natália Braga Hortêncio Juca1, Weline Lucena Landin Miranda1, Igor Santos Costa1, Luciana Maria Pereira de Oliveira1, Heitor de Sá Gonçalves1

Recebido em: 12/10/2010
Aprovado em: 09/03/2011

Trabalho realizado no Centro de
Dermatologia Dona Libânia – Fortaleza (CE),
Brasil.

Conflito de interesse: Nenhum
Suporte financeiro: Nenhum

Abstract

Introdução: Os sarcomas cutâneos primários são neoplasias mesenquimais raras e de grande heterogeneidade histopatológica. O angiossarcoma é um subtipo de sarcoma cutâneo maligno pouco comum, que atinge preferencialmente homens idosos. De localização típicamente cefálica, apresenta-se como lesões multifocais que levam a edema, sangramento e ulceração locais. São agressivos, de crescimento rápido e difícil delimitação de margens cirúrgicas, o que explica altas taxas de recorrência. Descreve-se caso de angiossarcoma primário em couro cabeludo de paciente idosa em uso de poliquimioterapia para hanseníase virchowiana. Associação de angiossarcoma e hanseníase é incomum. A ausência de relatos semelhantes na literatura motivou a descrição do caso.

Keywords: NEOPLASIAS CUTÂNEAS, SARCOMA, HANSENÍASE VIRCHOWIANA


INTRODUÇÃO

Os sarcomas cutâneos primários são neoplasias mesenquimais raras e de grande heterogeneidade histopatológica. Com a evolução da Cirurgia Dermatológica e da Oncologia Cutânea, os dermatologistas têm sido requisitados para diagnóstico e propedêutica desses tumores menos frequentes; entretanto, ainda são escassos os estudos sobre o tema.1

O angiossarcoma é subtipo de sarcoma cutâneo maligno que tem características morfológicas e funcionais semelhantes ao endotélio vascular e linfático normais. Inicialmente descrito por Caro e Stubenrauch em 1945, é de apresentação incomum, compreendendo cerca de 2% dos sarcomas de partes moles.2 Acomete preferencialmente o sexo masculino, na proporção de 2:1 em relação ao sexo feminino, sendo mais comum em idosos.3

Classicamente os angiossarcomas são classificados em angiossarcoma propriamente dito, angiossarcoma associado a linfedema (também conhecido por linfangiossarcoma ou síndrome de Stewart-Trèves) e angiossarcoma da mama, induzido por radiação.4

A patogenia ainda é incerta. Pode eventualmente estar associado ao linfedema crônico (síndrome de Stewart-Trèves) e tem sido descrito após mastectomia ou em locais previamente irradiados.5,6,7 Há relatos de associação com fatores genéticos e ambientais, infecções virais por herpes vírus tipo 8 e imunodeficiências inatas ou adquiridas.5 Há um relato na literatura de angiossarcoma em couro cabeludo de paciente transplantado renal, e algumas séries de casos em pacientes com quadros prévios de isquemia cardíaca e outras doenças cardiovasculares crônicas.8,9

Revisão recente de 47 casos demonstrou que 76% dos pacientes eram do sexo masculino, com idade média de 75,1 anos, e que, na quase totalidade (96%), as lesões eram cefálicas.10 Alguns autores tentam correlacionar a localização das lesões com exposição solar crônica, mas essa associação não é formalmente aceita até o momento.10 Há dois relatos de apresentação com alopecia cicatricial.

O angiossarcoma geralmente se apresenta na forma de lesões multifocais e assintomáticas, que eventualmente levam a edema, sangramento e ulceração locais. São agressivos, de crescimento rápido e de difícil delimitação de margens cirúrgicas, o que explica as altas taxas de recorrência local e de metástases.7 O tempo entre o surgimento das lesões e o diagnóstico pode ser longo, com mediana de cinco meses, fato que, aliado à invasão locorregional, levam a pior prognóstico.7,10

RESUMO CLÍNICO

Relata-se o caso de paciente do sexo feminino, de 71 anos, que se encontrava em seguimento dermatológico há quatro meses por hanseníase virchowiana. Buscou atendimento médico em fevereiro de 2010 por referir o surgimento de lesão em couro cabeludo de crescimento rápido e sangramento aos mínimos traumas. Era diabética, hipertensa e também portadora de anemia em consequência da poliquimioterapia multibacilar (PQT-MB). Estava em uso de: ácido fólico 5mg/dia, metformina 1,5g/dia e captropil 75mg/dia.

Ao exame, apresentava nódulo friável, de coloração azulada a vinhosa,medindo cerca de 3cm,em região frontal de couro cabeludo (Figura 1).Foi realizada biópsia da lesão, cujo histopatológico revelou proliferação neoplásica infiltrativa na derme, composta por grande número de vasos sanguíneos dilatados e tortuosos, muitos deles anastomosados e repletos de hemácias (Figura 2).Chamavam atenção a presença de células endoteliais bastante atípicas ao longo desses vasos, sugerindo o diagnóstico de angiossarcoma (Figura 3).

Exames de bioquímica e tomografia computadorizada de tórax, abdome e pelve, além de ressonância magnética de crânio, não evidenciaram alterações significativas.

Procedeu-se à exerese completa da lesão, associada a radioterapia e quimioterapia adjuvantes. Após dois meses de seguimento, surgiram três nódulos, medindo cerca de 0,5cm, adjacentes à lesão inicial, cuja exerese confirmou satelitose.

No momento, a paciente segue em quimioterapia, sem novos sinais de doença locorregional ou a distância, e em uso de PQT-MB, na nona dose.

DISCUSSÃO

O angiossarcoma é neoplasia vascular e linfática que acomete pacientes idosos. A quase totalidade dos casos se apresenta em cabeça e pescoço, acometendo preferencialmente o couro cabeludo em mulheres, como no caso referido, e regiões frontal e centro-facial em homens.2,9

Clinicamente o angiossarcoma tem vários aspectos, desde máculas, pápulas, placas e até nódulos eritematosos, mal definidos, de crescimento rápido.A coloração violácea adquirida pela lesão da paciente pode simular clinicamente equimoses e hematomas, lesões senis comuns que podem passar despercebidas como lesões suspeitas de malignidade e, assim, postergar o diagnóstico e comprometer o prognóstico.

Os exames de imagem podem corroborar o diagnóstico e, assim, tanto a ressonância magnética quanto a tomografia computadorizada podem ser usadas no estadiamento dessa neoplasia.10 O diagnóstico é firmado por biópsia e análise histopatológica do tecido.

Histologicamente, o angiossarcoma bem diferenciado é composto por rede de canais vasculares irregulares na derme, bem formados, geralmente delineados por células endoteliais achatadas. O tumor moderadamente diferenciado contém aglomerados de vasos mais compactados e canais vasculares delineados por múltiplas camadas de células endoteliais atípicas, que exibem frequentemente proliferação intraluminal. Nos casos de angiossarcoma pouco diferenciado pode haver exclusivamente células pleomórficas atípicas e apenas formação de lúmen vascular tênue.4 No caso da paciente em questão, o alto grau de atipias celulares corroborou a inclusão nesta última variante. Cabe lembrar que o acentuado grau de atipia é o que o diferencia, por exemplo (morfologicamente), do sarcoma de Kaposi ou de outros sarcomas vasculares de comportamento maligno intermediário, que apresentam atipias mais leves.

A imunoistoquímica revela positividade para os marcadores CD31 (molécula de adesão das plaquetas ao endotélio), CD34 (antígeno contra as células progenitoras hematopoiéticas humanas) e antígeno contra o fator VIII (fator de von- Willebrand). Eles comprovam a origem vascular do tumor, porém não permitem sua subclassificação isoladamente.1

A profundidade do tumor é importante fator prognóstico,sendo de melhor evolução aqueles superficiais, localizados acima da fáscia.A classificação TNM admitida para critérios oncológicos de invasão tumoral inclui, nos sarcomas, o item G (graduação histológica). Segundo esta última, os angiossarcomas são sempre considerados tumores de alto grau (G4). O estádio T se refere ao tamanho da lesão e a sua profundidade em relação à fáscia (T1 inferior ou igual a 5cm, T2 superior a 5cm). O envolvimento linfático é raro, abaixo de 4%; porém, quando positivo, o prognóstico é semelhante a metástase a distância (estádio IV). Em estudo com amostra de 1.772 pacientes diagnosticados como portadores de sarcomas no Serviço de Dermatologia e Oncologia da FMUSP apenas 46 (2,6%) apresentavam metástases nodais em algum momento de sua doença.1 Nesse caso, o estadiamento estabelecido foi T1N1MxG4.

O diagnóstico diferencial envolve desde malformações vasculares, como os hemangiomas benignos, até outros tumores vasculares, como o sarcoma de Kaposi, além de carcinoma espinocelular e melanoma. 7

O tratamento deve ser individualizado, de acordo com o estadiamento da doença e o estado geral do paciente, já que, devido à raridade da apresentação, não há estudos prospectivos randomizados adequados para a padronização terapêutica. A exerese isolada ou em associação com radioterapia é utilizada em casos iniciais.A quimioterapia com doxorrubicina, ciclofosfamida, metrotexate e vincristina é indicada em casos avançados; nestes últimos, a radioterapia é opção para o tratamento locorregional de lesões extensas ou como terapia adjuvante.10 Há também relatos de artigos com sobrevida livre de doença após cinco anos em idoso com uso exclusivo de radioterapia locorregional em angiossarcoma de couro cabeludo.2

Em quadros avançados, há relatos de uso combinado de interferon-alfa e ácido 13-cisretinoico, com boa resposta.10 Novas modalidades terapêuticas estão sendo desenvolvidas e utilizadas em ensaios clínicos, como interleucina-2 e doxorrubicina lipossomal intravenosas.5,6,9 Outra opção terapêutica é o placitaxel, terapia já bem definida na terapêutica do sarcoma de Kaposi, associado ou não à quimioterapia habitual.7

O prognóstico é reservado, com alta taxa de recorrência local (84% em cinco anos).A taxa de sobrevida nesse intermédio gira em torno de 34%, sendo a principal causa mortis a presença de metástases cerebrais, pulmonares e cardíacas.1 Holden e colaboradores reportaram série de 72 doentes tratados cuja sobrevida em cinco anos foi 12%, com mediana de 15 meses.10

Pacientes idosos costumam apresentar menor grau de atenção com a estética e com o autocuidado, além de comorbidades que os fazem utilizar diversas medicações, o que pode contribuir para maior susceptibilidade a infecções. A hanseníase é dermatose infecciosa prevalente no Brasil, podendo acometer qualquer faixa etária. O surgimento do angiossarcoma primário durante terapia de PQT-MB é incomum, porém não improvável, já que a paciente se apresentava com resposta imune deficiente. Não foram encontrados na literatura nacional e mundial relatos semelhantes, que evidenciem a relação da neoplasia com a hanseníase ou com a poliquimioterapia instituída, o que torna este caso único e de interesse acadêmico.

Referências

1 . Sarcomas cutaneos primarios. An Bras Dermatol. 2006;81(3):207-21.

2 . Successful radiotherapy of facial angiosarcoma. Int J Dermatol. 2008;47(11):1190-2.

3 . Cutaneous angiosarcoma of the face and scalp presenting as alopecia. Australas J Dermatol. 2003;44(4):273-6.

4 . Malignant Vascular Tumors. In: Soft Tissue Tumors. 4ª ed. St Louis,Missouri; 2001.

5 . Complete remission of a radio-resistant cutaneous angiosarcoma of the scalp by systemic treatment with liposomal doxorubicin. Br J Dermatol. 2002; 147(1): 150-3.

6 . Angiosarcoma of the scalp associated with renal transplantation. Br J Dermatol. 1997;136(5):752-6.

7 . Cutaneous angiossarcoma: A case serieswith prognostic correlation. J Am Acad Dermatol. 2004;50(6): 867-74.

8 . Extensive angiossarcoma on chronically sundamaged skin. Am J Clin Dermatol. 2004;5(1):53-5.

9 . Primary Cutaneous Epithelioid Angiosarcoma. Acta Derm Venereol. 2008; 88(4):422-3.

10 . Angiosarcoma of the scalp: new treatment modalities. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2001;15(4):370-1.


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