72
Views
Open Access Peer-Reviewed
Relato de caso

Reação de corpo estranho ao ferrão do mandi (Pimelodus maculatus) simulando carcinoma espinocelular

Pedro Henrique Ramalho Bafume1; Guilherme Andretta de Burgos Ghirello1; João Lucas Samaha de Azevedo1; Mariana Ferreira da Silva2; Elisangela Manfredini Andraus de Lima1; Flávia Regina Ferreira1,3

DOI: https://doi.org/10.5935/scd1984-8773.2025170374

Fonte de financiamento: Nenhuma.
Conflito de interesses: Nenhum.
Data de submissão: 26/05/2024
Decisão final: 15/07/2024
Como citar este artigo: Bafume PHR, Burgos Ghirello GA, Azevedo JLS, Silva MF, Lima EMA, Ferreira FR. Reação de corpo estranho ao ferrão do mandi (Pimelodus maculatus) simulando carcinoma espinocelular. Surg Cosmet Dermatol. 2025;17:e20250374.


Abstract

Acidentes com peixes (ictismo) são frequentes entre pescadores. O mandi (Pimelodus maculatus) é um bagre de água doce que utiliza, como mecanismo de defesa, a introdução de ferrões dotados de glândulas de peçonha, caracterizando um ictismo ativo e peçonhento. Em uma série de 200 casos de ictismo registrados em rios e lagos do Brasil, aproximadamente 40% foram provocados por mandis e bagres. Relatamos o caso de um paciente com uma "ferida que não cicatrizava" na perna esquerda há 5 meses, após trauma local. O diagnóstico inicial de carcinoma espinocelular foi posteriormente redefinido como reação de corpo estranho ao ferrão do mandi.


Keywords: Reação a Corpo Estranho; Carcinoma de Células Escamosas; Ferimentos e Lesões; Peixes Venenosos.


INTRODUÇÃO

Acidentes com peixes são frequentes entre pescadores recreativos e profissionais.1 Denominados ictismo, esses acidentes podem ser classificados como ativos ou passivos. O ictismo peçonhento, ou acantotóxico, ocorre quando o peixe introduz um ferrão na vítima. Esse ferrão, geralmente serrilhado, é envolvido por uma bainha de tegumento sob a qual se localizam glândulas de peçonha.

No Brasil, os acidentes peçonhentos causados por peixes com ferrões localizados na cauda são provocados principalmente por arraias. No entanto, existem espécies com ferrões nas nadadeiras dorsais e peitorais, como os bagres, o peixe-escorpião e o niquim (ou peixe-sapo), todos marinhos, além do mandi, que é de água doce.2

Em uma série de 200 acidentes envolvendo peixes, observados por Haddad Junior em rios e lagos do Brasil, cerca de 40% foram causados por mandis e bagres.3 O Pimelodus maculatus, também conhecido como mandi-amarelo, mandi-guaçu, mandiuva, mandi-pintado ou mandiú, é uma espécie de bagre fluvial da família Pimelodidae. Embora a literatura o considere nativo das bacias dos rios São Francisco e Paraná, essa espécie ocorre em praticamente todas as bacias hidrográficas brasileiras.4

Clinicamente, as lesões podem variar desde lacerações cutâneas simples até danos arteriais e nervosos, podendo levar a sintomas como vertigem, edema, eritema, hemorragia local e até manifestações tardias, como infecções.5

Relatamos aqui o caso de um paciente com uma "ferida que não cicatrizava" na perna esquerda havia 5 meses, após trauma local, cujo diagnóstico inicial de carcinoma espinocelular (CEC) foi posteriormente redefinido como reação de corpo estranho ao ferrão do mandi.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 62 anos, branco, aposentado, natural e procedente da cidade de Taubaté, estado de São Paulo (SP). Procurou o Serviço de Dermatologia queixando-se de um "caroço" na perna esquerda há aproximadamente 30 a 40 dias. Relatava uma "picada" no local há 5 meses, ocorrida enquanto pescava às margens do rio Paraíba do Sul. Desde então, a lesão não cicatrizou, evoluindo com episódios recorrentes de inflamação e, mais recentemente, com o surgimento de um nódulo verrucoso e friável (Figura 1).

O paciente havia realizado dois ciclos de antibioticoterapia sistêmica, sem saber informar os medicamentos utilizados, além de uma drenagem em um serviço de pronto atendimento. Diante da hipótese clínica inicial de CEC, com diagnósticos diferenciais possíveis incluindo micoses profundas e outras doenças granulomatosas cutâneas, foi proposta a exérese da lesão.

Durante o procedimento cirúrgico, observou-se um pertuito dirigindo-se ao tecido subcutâneo. O nódulo inicial foi removido e enviado para exame anatomopatológico; o procedimento foi então interrompido. O paciente foi encaminhado para realização de radiografia e ultrassonografia, que evidenciaram imagem linear medindo aproximadamente 2,5 × 0,2 cm, fortemente ecogênica, com sombra acústica posterior nítida, compatível com corpo estranho (Figura 2).

O exame anatomopatológico revelou exuberante processo inflamatório crônico supurativo, associado a focos de hemorragia antiga e fibrose cicatricial na derme e tecido subcutâneo, corroborando o diagnóstico de reação a corpo estranho e afastando hipótese de neoplasia.

Foi realizada nova abordagem cirúrgica, agora mais ampla e profunda, guiada pelos achados de imagem. Durante o procedimento, identificou-se uma estrutura de consistência ósseo-cartilaginosa, serrilhada, reconhecida pelo próprio paciente como o ferrão do peixe mandi (Figuras 3 e 4).

 

DISCUSSÃO

Ictismo é o termo utilizado para designar acidentes envolvendo animais marinhos ou fluviais. Além das formas ativa (por ferroada ou mordedura) e passiva (por ingestão), consideradas as principais, também são descritas outras formas, como as provocadas por descargas elétricas ou pela introdução desses animais em orifícios naturais de banhistas.5,6

Os peixes envolvidos neste relato de caso — os mandis — possuem, como mecanismo de defesa, a inoculação de peçonha, fazendo parte de um subgrupo de espécies consideradas peçonhentas. Esses peixes apresentam três ferrões serrilhados, localizados na nadadeira dorsal e nas duas nadadeiras peitorais, envolvidos por uma bainha de tegumento sob a qual se encontram as glândulas de peçonha.6

Acidentes com animais aquáticos configuram urgências e representam um problema de saúde pública no Brasil, com alta incidência entre pescadores devido à natureza de seu trabalho. A gravidade desses acidentes varia conforme diversos fatores, como extensão da lesão, local acometido, infecções secundárias e envenenamento — este último mais comum com determinadas espécies.5

A falta de conhecimento, de divulgação adequada e de adoção de medidas preventivas contribui para a persistência dessa condição, que se constitui como o principal acidente de trabalho entre pescadores. Acidentes com peixes geralmente ocorrem quando as vítimas pisam nos animais, retiram anzóis ou arpões ou os manipulam.7

No caso descrito, a ausência de lembrança exata do acidente por parte do paciente e a confusão com picada de outro animal peçonhento contribuíram para o retardo no diagnóstico e para a maior complexidade no tratamento. A evolução clínica de vítimas de ictismo pode ser bastante variável, incluindo inflamações, infecções recorrentes, dores crônicas, nodulações, abscessos e granulomas, muitas vezes relacionados à persistência de corpos estranhos.5

O granuloma de corpo estranho é uma reação inflamatória a materiais imunologicamente inertes, que podem ser exógenos (p.ex., fios de sutura, talco, fibras de algodão, metais) ou endógenos (p.ex., queratina, colesterol, fragmentos de pelos).8

O paciente deste relato apresentou uma reação de corpo estranho ao ferrão do mandi, que, em sua evolução clínica, simulou um CEC, manifestando-se como nódulo verrucoso e friável. Esse quadro reforça a importância do exame anatomopatológico para esclarecimento diagnóstico.

Considerando que lesões cutâneas decorrentes de ictismo podem mimetizar diversas outras dermatoses e se apresentar de formas variadas,4 este relato destaca a importância da persistência na investigação diagnóstica e o papel fundamental do médico em realizar uma anamnese detalhada e um exame físico cuidadoso. É essencial considerar, entre as hipóteses diagnósticas, a epidemiologia local e as características da população atendida.

 

Agradecimentos

Agradecemos ao Dr. Rui Fernando Faria de Assis pela gentileza na cessão das imagens de ultrassonografia utilizadas neste trabalho.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:

Pedro Henrique Ramalho Bafume
ORCID:
0009-0005-6624-3667
Aprovação da versão final do manuscrito, Concepção e planejamento do estudo, Elaboração e redação do manuscrito, Obtenção, análise e interpretação dos dados, Revisão crítica da literatura
Guilherme Andretta de Burgos Ghirello
ORCID:
0009-0000-9923-6782
Aprovação da versão final do manuscrito, Elaboração e redação do manuscrito.
João Lucas Samaha de Azevedo
ORCID:
0009-0005-2781-0171
Aprovação da versão final do manuscrito, Concepção e planejamento do estudo, Elaboração e redação do manuscrito, Obtenção, análise e interpretação dos dados, Revisão crítica da literatura.
Mariana Ferreira da Silva
ORCID:
0009-0006-8085-7662
Aprovação da versão final do manuscrito, Elaboração e redação do manuscrito.
Elisangela Manfredini Andraus de Lima
ORCID:
0000-0002-2390-0410
Aprovação da versão final do manuscrito, Concepção e planejamento do estudo, Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados, Revisão crítica do manuscrito.
Flávia Regina Ferreira
ORCID:
0000-0001-5679-4282
Aprovação da versão final do manuscrito, Elaboração e redação do manuscrito, Participação efetiva na orientação da pesquisa, Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados, Revisão crítica do manuscrito.

 

REFERÊNCIAS:

1. Kaar CRJ, Nakanishi AK. Recreational and commercial catfishing injuries: a review of the literature. Wilderness Environ Med. 2017;28(4):348-54.

2. Nogueira T. Ictismo - acidentes causados por peixes [Internet]. InfoEscola. 2024.

3. Haddad Jr V. Animais aquáticos de importância médica no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop. 2003;36(5):591-7.

4. Pimelodus maculatus [Internet]. Wikipedia. 2024.

5. Ajmal N, Nanney LB, Wolfort SF. Catfish spine envenomation: a case of delayed presentation. Wilderness Environ Med. 2003;14(2):101-5.

6. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. 2nd ed. - Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 2001.

7. Haddad Jr V. Atlas de animais aquáticos perigosos do Brasil: guia médico de identificação e tratamento. São Paulo: Roca; 2000.

8. Meyer TN, Oliveira LR, Almeida SMCG, Ribeiro-Silva A. Reação de corpo estranho ao preenchimento de poliamida na face. Rev Bras Cir Plast. 2016;31(3):433-5.


Licença Creative Commons All content the journal, except where identified, is under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International license - ISSN-e 1984-8773